A questão colocou-se de imediato: estaria o Carnal à altura da performance televisiva de Ljubomir Stanisic? Ora, restaurantes mexicanos de chefs europeus costumam dar asneira; e os primeiros testemunhos de clientes apontavam nesse sentido. “Nada de especial”. “Fraco”. “Já comi melhor”, disseram-me amigos, acrescentando: “Tens de lhe dar um correctivo. Tens de vingar os humilhados do Hell’s Kitchen.”
A verdade é que, assim que passei a porta, cheirou a descalabro. O ambiente era o de uma cantina barulhenta, grupos de turistas americanos sendo turistas americanos, numa vozearia de caserna ao som de um flamenco à la Gipsy Kings.
Quanto à decoração, apesar da autoria artística e da serpente azteca no tecto, o espaço parecia desarrumado, incaracterístico, frio – muito frio. Já sentado, mesmo à minha frente uma grelha de ar condicionado projectava ventos polares. A empregada foi chamada a resolver e fez o que fazem os empregados: assentiu e virou costas.
Colocaram-se, então, os cenários do costume:
1) fica tudo na mesma;
2) a temperatura aumenta apenas meio grau;
3) vem o chefe de sala informar que “o sistema está centralizado e blábláblá” (uma forma polida de dizer: “Andamos aqui de um lado para o outro e estamos com um calor do crl.”).
A verdade é que nada disto aconteceu – e o incidente foi transformador. O que se passou devia ser exemplo de boas práticas nas escolas de hotelaria. A temperatura começou por aumentar uns dois graus centígrados e a empregada veio perguntar se estava bem assim. Não estava. Acudiu então o chefe de sala. Primeiro, foi honesto: “Se aumentarmos mais a temperatura, a sala vai ficar muito quente.” Depois, foi diligente e prático: “Podemos mudá-los de mesa, se preferirem.” Dito e feito. Agilidade e bom senso.
Aos cinco minutos de jogo eis, portanto, o meu primeiro equívoco da noite. E havia mais.
Segundo equívoco. A comida. Estava à espera dos tacos do costume e dos atalhos do costume. Falo, por exemplo, de tacos al Pastor feitos sem chiles secos (caros, difíceis de importar); de salsa verde sem tomatilhos frescos (ainda mais difíceis de encontrar); de pasta de achiote manhosa ou inexistente. Engano. O Carnal faz check em todos os ingredientes críticos e tem um grande al Pastor.
De resto, o menu concilia tradição com umas pitadas de criatividade, mas não se traficam sabores autênticos por soluções de conveniência pintadas de pós-modernismo. O que há são acrescentos: um polme moderno, uma coleslaw, uma maionese de kimchi. Sempre com tino e com alma mexicana.
Há também técnica e cuidado. Isso pode ver-se em coisas simples, como no chicharrón, torresmos que se tornam facilmente borrachosos e râncidos e aqui são leves e estaladiços; ou no guacamole, versão fresca com pedaços (em vez da papa de abacate do costume); ou no extraordinário polvo; ou no flan de la abuela, misto de tarte de queijo basca e flan tuga.
Terceiro equívoco. Preço. Um restaurante de chef de prime time da TV, em pleno Chiado, faria supor que teríamos uma factura inflacionada. Mas o Carnal é mais barato do que os mexicanos da Margem Sul. Sem cocktails, a conta pode andar entre os 20€ e os 25€. Com cocktails (muito bons), chegará aos 35€.
Por fim, quarto equívoco. Já depois da visita, leio que Ljubo deixou o restaurante nas mãos dos “filhos” do 100 Maneiras, Manuel Maldonado, João Sancheira e Luis Ortiz. A responsabilidade é deles, ainda que o chef infernal seja investidor e ande por perto. Acresce que, aos fogões, não está um rapazola que leu dois livros de culinária mexicana e viu três vídeos no Youtube. Luis Ortiz é natural do México e é quem manda na cozinha.
Uma bela cozinha. Uma Paradise Kitchen.