Leio o comentário de um estrangeiro sobre a Casa da Índia. Diz ele: “The name doesn’t really fit the place since it’s proper Portuguese food and not Indian.” Solto um suspiro, enfadado com um mundo cada vez mais literal, de traduções instantâneas e contextos preguiçosos. Quem deduz que a Casa se diz da Índia por ser indiana, suponho, é bem capaz de entrar na Casa dos Passarinhos à procura de periquitos. E nem imagino o que espera encontrar na Casa dos Bicos.
Na verdade, o nome assenta bem. A Casa da Índia é um lugar indeciso, qualquer coisa entre um restaurante e uma marisqueira, meio tasca, meio churrasqueira, onde há sempre gente a chegar, travessas a sair e coisas a acontecer, numa algazarra de sons, cores e cheiros. E esse charivari cola bem ao imaginário de comércio portuário que o nome evoca.
Prossegue o gringo, com a mania que é a Time Out: “Go for the grilled octopus with potatoes”. E aqui fico com a leve suspeita de que o rapaz não é parvo de todo. Porque a grelha é, de facto, um dos pontos fortes da casa, mais consistente que a comida de tacho, e o polvo na brasa (12€) é uma das apostas seguras (chega bem grelhado, quase já ressequido por fora, tenro e húmido ao centro), assim como o frango assado é o bicho com mais saída (meio a 7,5€, inteiro a 14€). Nestas minhas últimas incursões, porém, escolhi outros caminhos.
Primeiro, num almoço, sábado, duas da tarde, casa apinhada num glorioso escarcéu pré-Covid. Libertador. A ementa do dia, como em qualquer outro, alonga-se por uns trinta pratos, a que se somam outros tantos fixos (incluindo um leitão bastante recomendável), mais a página dos mariscos e petiscos. Mas já lá vou.
Na mesinha de 0,3 metros quadrados começam por aterrar umas petingas fritas com arroz malandrinho (8€). São 13 peixinhos de 7 cm cada, para abocanhar inteiros, cabeça e tudo, bem fritos, estaladiços e sem excesso de farinha. Chegam com um simpático arroz de amêijoas, malandrinho como prometido, meio atomatado, perfumado de coentros, e que serve de guarnição a outros pratos. Tudo impecável. De seguida, experimenta-se o coelho na brasa, que atesta a competência da grelha. Faz-se acompanhar de um arroz sem grande história e umas batatas aos palitos que, apesar de não ter sobrado uma para amostra, lamentei serem congeladas pré-fritas.
Num segundo dia venho pelo petisco. Ainda não são sete da tarde, casa ao barrote como ao almoço, balcão povoado de solitários, e nas mesas já se acotovela uma fauna sortida, entre estrangeiros em aventuras etnográficas, malta de fatinho e gravata aliviada, casalinhos urbanos, hipsters e alguma malandragem, tudo a partilhar bejecas e a picar alguma coisa. É a hora do alvoroço, em que isto mais parece uma barra espanhola. A minha favorita.
O pica-pau não se desaconselha. O de vaca (9€) chega em pedacinhos pequeninos, a safar a qualidade mediana da peça, bem temperado, toque de manteiga, muito pickle, muito alho. De caminho, desiludo-me com uns papo-secos farináceos que não têm razão de ser, e um picante da casa fermentado em whiskey. Desisto do condimento e consigo meter cunha por umas aceitáveis bolinhas de pão de lenha.
Depois vou-me às gambas e percebo que continuam a ser cartão de visita para a casa. Começo pelas fritas (9,5€), uma travessa de duas dúzias, firmes, feitas em azeite e alho, toque de manteiga, coentros a preceito. Depois, felizmente, ainda decido ir às cozidas. Os crustáceos de boa têmpera, a saberem apenas a mar e sal grosso. Um pratinho delas (8,5€) e um jarrinho de branco à pressão: eis a minha sugestão para fazer uma paragem aqui a qualquer hora do dia (a ideia nem sequer é minha, estou só a imitar um sábio taberneiro da cidade).
Volto ao camone e ao seu comentário Google: “The place might not look like you wanna go in, but just do it!”. Aqui, julgo, o forasteiro está só armado em Anthony Bourdain, e quem o oiça é capaz de pensar que esta instituição do Calhariz é uma bodega suspeita que exige a precaução de um imodium. Falso. Reconheço que, para o turista gracioso do Chiado, haverá um efeito dissuasor neste alvoroço finório de casa de pasto. Mas para mim isso é só um ponto a favor.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.