Ambos ligados à restauração, Vera Rente e Javier Mendez conheceram-se em Barcelona e a vontade de abrir um restaurante trouxe-os até Cascais, onde montaram a Casa Davolta. À volta dos tachos está Javier, que já trabalhou com chefs Michelin como Martín Berasategui, e que pratica uma cozinha internacional com base francesa, sempre com muita experimentação à mistura. A carta muda quatro vezes por ano, para dar resposta à sazonalidade dos produtos, e há sempre pratos que não constam no menu, pratos esses que resultam de experiências do espanhol e que chegam ao cliente por sugestão do chef. Aqui não há menus de degustação fixos, já que cada pessoa, com a ajuda de Javier, pode fazer o seu próprio menu com algumas das opções da carta. Há açorda de crustáceos, leitão na brasa ou a estrela da casa: o royal de gamba branca com ar de Sevilha.
Crítica:
Entramos no Quintal e uma porta abre-se. “Bem-vindos.” É como uma casa particular, moradia indiferenciada da Areia, bairro residencial a meio caminho entre Birre e o Guincho. Cá fora nada anuncia o restaurante e quando entramos mantém-se a sensação de estarmos numa sala de jantar doméstica: meia dúzia de mesas, tapetes antigos, abat-jours e móveis baixos, linhas limpas mas confortáveis – houvesse uma lareira e calçávamos umas pantufas.
Quem nos recebe é Vera Rente. Está sozinha a servir e a sua actuação é perfeita. É também dona do sítio, mas não desses anfitriões fanfarrões, chatos e displicentes. Só nos apercebemos aliás da sua condição no fim da refeição, porque ouvimos a conversa na mesa ao lado, duas senhoras repetentes, moradoras da zona. De resto, o que temos é um serviço do melhor: educado, rigoroso, conhecedor, empático.
É já muito boa esta sensação e melhor fica quando a comida aparece. A abrir, manteigas para entreter com pão da Gleba, este bem torrado, nas versões broa de centeio e de trigo alentejano. Gorda e viciante a manteiga de foie gras, contrastante a adocicada noisette, com notas fortes a caramelo.
Estamos distraídos com isto quando chega a primeira de quatro entradas. O começo é logo surpreendente. A ostra, da Ria Formosa, vem sem concha, a carne imersa num gaspacho suave com croûtons. Temos comido muitas ostras, imersas em muitas coisas, mas nenhuma bateu esta no ano 2019. Primeiro a surpresa da temperatura do bivalve, tépido, dando-nos ainda mais sabor e mais conforto; depois o equilíbrio do caldo, um gaspacho bem domado nas aromáticas e na acidez, frescura e emoção; por fim os croûtons feitos de brioche, ligeiramente doces, a completar a paleta.
Seguem-se duas entradas numa. Expliquemos. Queríamos provar as entradas de chicharro e de sarda. Mas só provar. “Não há problema, trago um bocado de cada”. Ou seja, duas meias doses de duas entradas diferentes, divididas por ambos os comensais. Isto é serviço de fine dining do melhor. E, já agora, isto é comida da melhor. O peixe vem cru e firme, só umas pedras de sal no topo, carregado de sabor e textura. Suspeito de uma cura breve, até porque a pele crua da sarda, tal como a da cavala, pode ser perigosa se não for bem preservada (razão pela qual os japoneses a costumam brasear). Do prato soltam-se aromas a fumo, porventura oriundos da bolinha de puré de beringela que acompanha o peixe.
Estamos em modo de alta cozinha delicada e assim continuamos. Nova subida à estratosfera com o polvo. A inspiração é o polvo à galega, mas a execução é outra coisa. No prato um tentáculo simples, cozido, íntegro – perfeito e fotogénico como só os tentáculos. O pormenor de trazer uma faca de carne mas sem serra é também delicioso. A lâmina atravessa o polvo como se fosse um pudim, mas na boca há firmeza q.b.. Tenho comido polvos tenrinhos que deixam de ser polvos para serem coisas só tenrinhas. Este é tenrinho mas é polvo: tem elasticidade, consistência. E depois vem o resto, como se os tentáculos fossem ramos que seguram pequenos brindes: há um picante de pimentão em forma de micro-gotas desidratadas; aqui e ali pitadas de gengibre; e um sabor anisado de folhas de huacatay (Tagetes minuta), erva popular no Peru, já introduzida na Madeira, e que se cultiva no quintal da Casa Davolta.
A completar as entradas, a açorda de crustáceos. Empratamentos soberbos, dose em dois pratos vindos da cozinha (como tudo o resto), cada um com seu ovo panado no topo. A indicação é para o quebrar sobre a carne dos crustáceos, derramando-se a gema liquefeita, que se mescla com um molho de caranguejos e Manzanilla, o típico vinho branco seco andaluz.
Tivéssemos parado aqui e já estávamos bem. Não paramos e ficamos melhor. Os pratos principais também podem ser transformados em meias-doses (obrigado, obrigado) e só assim temos estômago para provar outras duas criações. A primeira uma azevia, peixe achatado parecido com a solha, molho au meunier de lingueirão e os odoríferos cogumelos trompetas da morte, a puxar pelo Inverno lá fora. A segunda invenção era um rabo de touro desfiado, no interior foie gras, por cima lâminas de trufa de Outono.
Final em beleza com a sobremesa de chocolate e avelãs, bom cacau escondido numa espécie de mochi, ao lado espuma de avelã, como um Ferrero Rocher sem o enjoo da Nutella.
A questão impõe-se. De onde vem isto? Quem se esconde por trás de Vera? Javier Méndez, espanhol de Sevilha, surge no final do almoço, para cumprimentar os clientes. É ele o chef e, como se adivinhava, tem já muito mundo. Trabalhou no Lasarte, o três estrelas Michelin de Martín Berasategui, em Barcelona (durante cinco anos); no Aponiente, de Ángel León (três estrelas também); bem como na Enoteca Paco Pérez, do Hotel Arts (duas estrelas), restaurante onde conheceu uma rapariga, formada na Escola de Turismo e Hotelaria do Estoril, de seu nome Vera Rente. Casaram e estão a ser muito felizes.
Uma história romântica. E deliciosa.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.