Quando olhamos para o tacho, parece básico. Arroz, miolo de bivalves, camarões. Mas depois da primeira colherada, percebemos que estamos perante um dos grandes arrozes de marisco deste país. Os bagos estão cozidos num ponto que não é al dente nem cozidinho, mas uma condição indefinida que escapa ao vocabulário da literatura de receitas, o momento entre uma coisa e outra, o pós-al dente, o pré-cozidinho, o carolino à portuguesa nas mãos de um chef dos bons.
O caldo, por sua vez, é mais denso do que um caldo e menos denso do que um creme, um bisque leve, um ligeiro veludo de crustáceos e legumes que transporta o arroz, distribuindo-o pela boca, preenchendo cada cantinho da boca, sem amargos a mais, sem sal a mais, só sabor, essa coisa que nos faz salivar e nos resgata da tristeza quando a vida nos parece incomestível.
À segunda colherada, pescamos uma gyoza com miolo de sapateira e santola e um mexilhão. E à terceira os camarões, calibre 15/25 (15 a 25 bichos por quilo, 40 a 66 gramas cada). E voltamos a experimentar outra coisa. Devem ter sido caramelizados em lume vivo mesmo antes de o tacho vir para a mesa e isto produz uma dissonância tostada e ligeiramente doce sem que se perca a suculência do camarão nem a ideia de arroz de marisco. Não são os “tigre” anunciados, mas ainda assim só temos o lombo e vem limpo e devidamente descascado, pelo que se perdoa “a falha do fornecedor”.
Tivéssemos ficado por aqui e eram cinco estrelas. Mas houve mais. A desilusão começou logo à chegada. “Peço desculpa mas não pode ficar cá dentro. Só estamos a servir na esplanada”, atirou, implacável, a empregada. Essa informação não havia sido transmitida ao meu amigo, que reservara mesa nessa manhã, quando já faziam 33 graus de outonal calor. A esplanada fica no deserto de betão que é o Terreiro do Paço, uma praça que atrai turistas mas nunca encantou os portugueses, talvez emocionalmente influenciados pela javardice endémica do casario em redor. Acresce que nesse dia, em frente, a vista era para uma construção de andaimes e lonas em forma de estádio de futebol pré-fabricado, guarida de um evento desportivo qualquer.
Sentámo-nos como meninos obedientes e assim nos deixaram por 10 minutos, sem uma imperial, um copo de água, um entretém de boca. Em redor cirandavam rapazes e raparigas, dolentes e distraídos, com a excepção de um indivíduo com energia para diálogos mais longos. Era um rapaz com pronúncia cerrada de uma região que não identifiquei, mas alguém lhe deve ter dito que deveria ser simpático e atencioso e ele confundiu isso com uma postura falsa de subserviência que descambava logo para o à-vontadinha, conseguindo na mesma frase usar “os senhores”, “né” (não + é) e “fixe”, como se estivesse numa roda de ganza num conselho de ministros.
Houve, aliás, outros colegas que falharam, era notória a desqualificação geral.
Isto aborrece mas não espanta, mesmo sabendo que estamos num restaurante da Multifood (Alma, Tapisco, ZeroZero, Pesca, Honorato...). Infelizmente, é assim por todo o lado e mais grave terá sido porquanto o chef residente, Luís Gaspar, se encontrava ausente, em lua de mel.
Isso ter-se-á notado menos na cozinha, que oscilou entre o médio, o bom, o muito bom e o já citado excelente arroz de marisco.
Mais notas de prova. Estava assim-assim a salada de polvo crocante, na verdade só um tentáculo crocante, as ervilhas tortas poucas, os cubos de batata doce assada sem fazerem grande coisa pelo resto do molusco, cortado em rodelas finas e batidas. Bom o leitão, com puré de batata doce e coração de alface grelhado, de execução irrepreensível mas repetido em muitas mesas de Lisboa. Muito bons os peixinhos da horta, polme atmosférico e partido, acompanhados de um “molho tártaro” que parecia antes uma maionese com ervas, sem evidência das características alcaparras, que atiram o tártaro para outro nível.
Na mesa esteve também sempre um sortido de azeitonas cítricas, bolas de pão da avó (demasiado brancas) e azeite para molhar. A terminar, foi-se pelo arroz doce, com uma espuma com canela e arroz tufado no topo, tudo impecável.
E no entanto acabámos a refeição longe da euforia.
Isto também pode ter tido a ver com a conta: 85 euros por um almoço, sem vinhos, para duas pessoas foi muito. Podemos aceitar que o tachinho unipessoal de marisco vale os 24 euros. Mais difícil é engolir os 16 euros da salada de polvo, por exemplo.
Dá a ideia de que esta Casa Lisboa, onde antes morou o chef Vítor Sobral e José Cordeiro, ambos ali infelizes, foi sobretudo uma oportunidade imobiliária, que a Multifood quis agarrar, em época de vacas gordas. É verdade que o espaço é nobre, mas a esplanada pouco se distingue das da vizinhança, genericamente pouco recomendáveis. Nunca temos a sensação de estar num sítio especial, mesmo que o rio esteja ali ao lado. Há um conceito e é bom – cozinha portuguesa bem feita, século XXI – mas não se sente qualquer emoção, falta personalidade.
Se ainda há espaços na cidade onde enfiar um fogão e umas mesas – e se parece verdade que ainda há procura para esses espaços –, mais difícil é encontrar gente capaz para cozinhar e servir as pessoas.
O serviço da Casa Lisboa não está ao nível das ambições do restaurante; e embora Luís Gaspar seja um dos mais notáveis e humildes chefs da sua geração (foi vencedor do Chef Cozinheiro do Ano), terá a seu cargo demasiadas cozinhas: para além desta, a Sala de Corte, mais os dois Delideluxe. É muita coisa. E pode acabar em pouco. E seria uma pena.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.