Por mais voltas que dê à consciência e à cidade, não encontro jeito de me apaziguar com a impossibilidade de uma certa categoria de estabelecimento saltar uma flagrante contradição: o pezinho na artesanalidade e o fatal constrangimento dos mesmos moldes que enformam o resto do mundo, da Padaria Portuguesa ao Starbucks. Marx chamar-lhe-ia subsunção capitalista: a casa de que falamos foi fundada em 1862, mas eu e os demais clientes temos de nos sujeitar ao flagelo pós-moderno do pré-pagamento, do tabuleiro de plástico, da ausência de serviço de mesa. É uma pena, porque o requinte das massas a que a Piriquita nos habituou não vai nada bem em tabuleiro de plástico.
O estofadinho das cadeiras é elegante, e há um bom mármore nas mesas, a dar robustez. Lá impossível era um serviço de mesa (e umas mesas menos amontoadas, com mais espaço per capita…).
Mas há dignidades que sobrevivem: aquela montra é um pináculo. Ao lado de dois grandes tabuleiros de metal apetrechados de travesseiros, exibiam-se, em discreto esplendor, as demais especialidades da casa sintrense: queijadas, pastéis, tartes, essa série de criações que vejo como descendentes diletos da pastelaria conventual. Tudo apetitoso, mas tenho de confessar que eu, em havendo travesseiros, fico ceguinha da boca e não concebo comer mais nada.
O meu pastel estava douradinho, muito bonito. Levei-o em ânsias à boca. Estava fresquíssimo, ainda morno (eu sei que há uma gente que gosta de pelar a boca, comendo-os a ferver, mas juro que acho isso disparatado por motivos óbvios de o calor impossibilitar chegar aos sabores, e se é simplesmente para queimar a boca, posso fazê-lo com qualquer outra coisa, sem desperdiçar maravilhas). Logo o açúcar se me colou aos lábios, que sensação magnífica. Lá se ia desfazendo o folhado, muito levezinho, cozido num ponto em que as farinhas ficam no sabor perfeito para acamar o creme amarelo inconfundível, ligeiramente amendoado, tudo afogado em açúcar, aqui, como tem de ser.
Sejamos honestos: não vejo forma de substituir o prazer que retiro de um travesseiro comido em Sintra, porque comer, como quase tudo na vida, não se resume a um elemento. Mas sem saltar das Avenidas Novas para a serra, houve uma dose grande de júbilo que retirei daquela dose grande de açúcar.