Atravessamos a Rua dos Bacalhoeiros e depois o Campo das Cebolas. São oito da noite e há um frenesim de gente nas esplanadas, empregados à porta chamando os transeuntes, quase todos estrangeiros. À frente, cortamos para dentro do labirinto de Alfama e, já com a Sé ao fundo, damos com o restaurante.
Não tivesse sido recomendado e nunca ali pararia. Estamos no olho do furacão do turismo. Lá dentro vemos folclore de cordas e calçada a fingir, selos do Tripadvisor, tradição in your face. Há demasiadas pessoas a comer, empregados demasiado atarefados, a premonição de espera longa e outras baldrocas típicas de sítios típicos.
Sucede que, quando começamos a olhar com atenção, percebemos diferenças. Na cozinha – aberta, luminosa –, vemos lâmpadas de aquecimento da comida na zona de passe, cozinheiros focados e o chef Samuel Mota a empratar e a vigiar a sala, a cabeça como um radar.
Também o serviço é acima da média alfamadense. Há um empregado indicado para falar sobre o vinho, capaz de sintetizar quem é o enólogo do espumante Mural (Paulo Coutinho, “um homem do Douro a fazer um vinho na Bairrada”) e todos sabem explicar o que vendem. O vinho está caro, 6€ o copo, numa garrafa que andará por menos de 8€ no retalho, e tudo está caro, mas temos pelo menos uma carta pensada, com referências fora da caixa, coisa que escasseia na zona e fora da zona.
De resto, nada do que comemos estava abaixo de bom. Estavam boas as bolinhas de pão de chouriço, e bem tratado o pão trigueiro e de milho (broa é que não era). O azeite para molhar, da colheita da família de Samuel, em Porto de Mós, pareceu um galega maduro, mas saboroso. Estava boa também a “tempura” de trouxa de couve, com migas de feijão, ainda que tempura fosse um eufemismo para “frito”.
No campeonato do muito bom, esteve a tosta de fígados de aves com morango e raspas de avelã; e os dois principais provados: belíssima a corvina, húmida, lascada, técnica de fine dining na confecção (o chef trabalhou quatro anos no Belcanto, com duas estrelas Michelin), a acompanhar uma açorda de ovas igualmente afinada e intensa; e, a terminar, o osso de vaca, corte da aba da costela, a desfazer-se, finalizado no carvão, acompanhado de uma tartelete de alho francês e de um puré de aipo sedoso, muito bem feito.
Fechou-se com um pudim abade de Priscos contrastado com gelado cítrico.
Em síntese. A Casa Tradição é um bom embaixador da restauração portuguesa em Alfama. Seria muito fácil e tentador baixar a guarda, mas Samuel Mota é exigente e competente no que faz. A casa tem porventura demasiados twists para a apelidarmos de “tradição”, mas ainda assim é mais portuguesa do que outra coisa.