A abrir, sugeriram-nos um Porto Vieira de Sousa, meio-seco, 10 anos de idade, ligeiramente refrescado, para acompanhar os amuse-bouches. Embora se trate de um vinho especial, torci o nariz. Pareceu-me uma versão sofisticada do cocktail impingido à entrada, tão comum na restauração lisboeta, e pareceu-me potência a mais no arranque da refeição. Mas o chefe de sala insistiu, educadamente, e quando um chefe de sala insiste, educadamente, devemos segui-lo. Como se haveria de constatar, “potência a mais” é um conceito que não existe no Cave 23.
O restaurante – pequeno mas bonito, luzes baixas, garrafas de vinho, madeiras – não tem carta e só nos foi dada a opção de uma degustação às cegas, sem se saber de quantos momentos, quantos pratos, quantos euros.
Apresentou-se então o chef em pessoa. Fá-lo-ia em todas as mesas, meia dúzia delas apenas, onde entregaria alguns pratos em mão. Este procedimento tornou-se comum em restaurantes de alta-cozinha que não gostam de formalidades e hierarquias – o chef já não está só no passe, não trata só do empratamento, antes vem à sala, fala com o povo, explica. “A minha cozinha é marcada pela cozinha tradicional portuguesa. Esta carne seca foi inspirada no tempo dos Descobrimentos. Não sei agora bem porquê...”.
No caso, Bernardo Agrela, com apenas 27 anos, nem sempre é articulado e isso não tem problema. Essa espontaneidade confusa e juvenil parece contaminar a comida, numa dislexia culinária original e pura.
Ao longo de um jantar com uma dúzia de pratos, nem tudo agradou, algumas coisas foram mesmo dolorosas. A tal carne seca, por exemplo, revelou-se um condensado de sal acídulo, um início de partida fulgurante mas falhado, as papilas contorcendo-se daquela violência. Mais à frente, uma rara “arouquesa com 120 dias de maturação”(!), fatiada como picanha(!), haveria também de subtrair-se sobre uma redução de soja, demasiado doce e fumada.
Dito isto, os erros foram rapidamente esquecidos. No fim, contei três ou quatro pratos brilhantes, únicos, cheios de personalidade, força, contrastes; outros quatro muito bons. E um óptimo chefe de sala. E um serviço impecável com um ritmo impecável. E um chef novo. Com uma cozinha nova.
Não se trata só de irreverência, palavra gasta na alta-cozinha (e também gasta na apresentação, gasta, feita pelo Cave 23, no seu site). Bernardo Agrela parece mesmo um miúdo que agarra na faca e no tacho e brinca com coisas e diverte-se com coisas. Imaginamo-lo madrugada dentro a manipular especiarias que encontrou nas Maldivas, quando por lá trabalhou num resort, a misturar cardamomo com junk food, doce com salgado, peixe com carne.
Veja-se a bolacha de amêndoa, finíssima, por cima cabeça de xara, especiarias e maionese. Entra na boca e faz tudo sentido, não sabemos bem o que é, estamos eventualmente em território asiático, sem compartimentação da sacarose. Estamos bem. A seguir, o prato mais célebre da casa (“para mim não é o melhor, e já o tirava da carta, mas os clientes não deixam”). A mesma surpresa. Bolas de Berlim recheadas com rabo de boi em toffee sauce, um creme de caramelo e natas. A ideia repugna, a imagem agonia. Não é elegante, não é bio, não é diet. Eventualmente, a bola de Berlim até será de produção externa. E no entanto a ligação é extraordinária, a massa do bolo leve, doce, ligando com a carne desfiada e cremosa.
Outro ponto muito alto foi aquilo a que o chef chamou o seu surf and turf. O nome estará desajustado, é um cliché foodie. Nem todos os pratos que juntam frutos do mar com carne serão surf and turf. Ninguém diz que carne de porco com amêijoas é surf and turf. Mas o que importa é que a corvina estava impecavelmente cozinhada, lascada, húmida, e que funcionou na perfeição com a areia de presunto e aquilo a que Agrela chamou de “molho da dobrada” e eu chamei uma cena que deve ter estado ao lume desde o fim-de-semana, mais um puré de pimento a espevitar de acidez e cor o conjunto.
Comido, escrito e revisto. A equipa do Cave 23 parece funcionar muito tem. Bernardo Agrela precisará apenas de refinar alguns pratos e ter atenção a certos detalhes. Por exemplo, não faz sentido servir em ardósias, nem num fine dining nem em nada. Talvez a sua cozinha peça também um ambiente ainda mais descontraído, mais rock n’roll.
Por enquanto, impera o jazz, com alguns standards e muito improviso. E impera bem.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.