1. Ceia
    Francisco Romão Pereira
  2. Ceia
    Francisco Romão Pereira
  3. Ceia
    Francisco Romão Pereira
  4. Ceia
    Francisco Romão Pereira Ostras, maçã de Alcobaça, gelado de codium (uma alga)
  5. Ceia
    Francisco Romão Pereira
  6. Ceia
    Francisco Romão PereiraChef Diogo Caetano

Crítica

Ceia

4/5 estrelas
Está de volta o fine dining mais sofisticado e inter-relacional de Lisboa (do mundo?). Alfredo Lacerda foi lá fazer amigos e comer muito bem.
  • Restaurantes
  • preço 4 de 4
  • São Vicente 
  • Recomendado
Alfredo Lacerda
Publicidade

A Time Out diz

Da rua, vêem-se as portas altas do edifício do século XVIII, albergue de turistas milionários. Estamos no Silent Living 1728, hotel onde uma noite custa 1160€. Lá dentro, sob um candeeiro gigante, pessoas de copo na mão conversando em trios, como numa vernissage de galeria de arte. Ao meu lado, uma mulher nórdica sexagenária de botas da tropa, meias de rede e Rolex; e um homem gadelhudo que tomaríamos por roadie dos Rolling Stones, não fossem as sapatilhas de autor. 

O ambiente intimida, mas o chefe de sala Ivo Custódio acode e força as apresentações. Tem um estilo extrovertido, latino solto como um percussionista de maracas – rabo de cavalo e camisa aberta sob o blazer. “Bem-vindo, deixe-me apresentar-lhe as outras pessoas”. Cumprimento o roadie e a rockeira do Rolex, bem como a administradora de uma produtora de cinema. Da Ucrânia. “Há dias, por esta hora, estava a passear o cão nas ruas sem luz de Kiev, sem conseguir ver a um metro de distância. Volto para a semana.” 

O anfitrião gere os tempos, fazendo um compasso de espera para os atrasados e somando histórias: sobre o edifício (recuperação do arquitecto Manuel Aires Mateus), sobre o vinho Madeira que os comensais bebericam (“Thomas Jefferson brindou com ele”), sobre o quadro do nascimento de Jesus que domina a sala, não particularmente minucioso (“comprado no mercado aqui ao lado”), – sempre usando a língua inglesa (“porque estão aqui italianos, espanhóis, alemães”). Sou o único local entre as 14 pessoas que daí a nada hão-de ser encaminhadas para a sala ao lado, mesa comunal de madeira ao centro, quase uma dúzia de metros de comprimento. 

Está tudo muito parecido com o que encontrei em 2019, data da minha primeira visita ao Ceia, oficiava ainda Pedro Pena Bastos, entretanto transferido para o Ritz, que com ele subiu às estrelas Michelin. Três anos depois, o restaurante reabriu com Diogo Caetano aos comandos, chef que já passou por uns quantos astros também, em Portugal e Espanha (do Belcanto ao Martín Berasategui, no País Basco). A ideia é a mesma: fine dining sem empregados de colete, playlist entre Dead Combo e Leonard Cohen, degustação de oito pratos para todos (100€), com pairing de vinhos (50€) ou de sumos (30€), também para todos. 

Os lugares à mesa estão mais ou menos definidos. Ivo Custódio é perspicaz na distribuição. Os solteiros são aproximados, os casados semi-afastasdos: ficam frente a frente e nunca lado a lado. A ideia é instigar novas relações, e elas acontecem. 

Ainda não aterraram os amuse bouche e já o casal alemão ao meu lado esquerdo expõe a biografia. Ele tem um boné de pala de produtor musical (“mas não sou famoso, faço música para filmes”) e ela tem um vestido preto de realizadora de documentários (e geme cinematograficamente a cada dentada na tartelete de lula e alga wakame). “Viemos viver para Portugal, porque odiamos passar o mês de Novembro em Berlim. Aqui é mais quentinho.”

Começam a chegar os pratos, numa cadência boa. A narrativa indica “uma viagem por Portugal, do fundo do mar até aos confins da floresta, passando pela planície e pela montanha”. Com os primeiros amuse bouche marinhos, o medidor de “hummms” detecta um nível de entusiasmo médio. Três snacks com diferentes texturas, todos com algas, jogos de texturas e umami, o lírio curado “very fishy” – diz a realizadora alemã – e eu concordo. 

O ritmo acelera, as coisas tornam-se mais sérias, com três grandes momentos até às sobremesas. A ostra com maçã e gelado de códium está perfeita, fresquíssima, como uma dentada numa rocha forrada a algas. O tártaro de veado faz aumentar os “humms” a um nível inédito, até porque acompanha o Vinho da Ordem, um palheto elegantíssimo extraído de vinhas centenárias perto da beirã Valhelhas. E, por fim, “já na chegada à floresta” – já a espanhola na ponta da mesa interage com o gadelhudo das sapatilhas de autor –, eis o peito de pato com batata doce e trufa e um jus bom para limpar com o dedo. 

No final das sobremesas, também de bom nível, há-de vir despedir-se Diogo Caetano, como aliás todos os cozinheiros. Mas a sala é de Ivo Custódio, sempre quem lidera o espaço e tem a piada certeira e o discurso treinado, quer na apresentação dos vinhos (com escolhas fora da caixa, como um Casa do Joa protegido com flor de castanheiro), quer na comida. Diz, todavia, o meu parceiro da direita, foodie à séria – e concordo com ele – que “a conversa, por vezes, é excessiva e nem sempre as histórias colam com o que nos é dado a provar”. Sublinha, por outro lado, que esteve no Mãos, em Londres, o estrela Michelin inaugurado por Nuno Mendes, com o mesmo conceito, e apesar da mesa comunal as pessoas não conviviam, estavam mais tensas. Mérito por isso do facilitador de relações Ivo Custódio. 

A cozinha também está muito afinada. Molhos, purés, maioneses – tudo cheio de sabor e texturas, doses pequenas que rebentam na boca (algumas demasiado pequenas), emulsões cuidadas, fumados, algas da moda (demasiadas), peixes com curas leves, empratamento cuidado, produto bom sem luxos. Há de tudo um pouco o que faz a joalharia do fine dining contemporâneo, para o bem e para o mal (muita mise en place, pouco fogo), com a vantagem de, em quatro horas, podermos conhecer gente de todo o mundo. 

Na despedida, ao fim de quatro horas, chamam-nos para a foto de grupo, comunhão porventura excessiva para um crítico gastronómico anónimo, que força uma saída sem despedidas, como na primeira vez. 

Como na primeira vez, ficou a vontade repetir.

*Crítica originalmente publicada na edição de Inverno 2022/2023 da Time Out Lisboa. A 27 de Janeiro, foi anunciado que Diogo Caetano deixou o Ceia. Apesar de ainda não haver substituto, o chef revelou à Time Out que a cozinha "ficou bem entregue". O restaurante continua a funcionar.

Detalhes

Endereço
Campo de Santa Clara, 128
Graça
Lisboa
1100-473
Horário
Qua-Sáb 20.00-23.00
Publicidade
Também poderá gostar
Também poderá gostar