Abriu há uns meses, entre o Rato e Campo de Ourique, e anunciou-se como uma casa despretensiosa, o casual chic das marisqueiras. Esboçámos os dez mandamentos da cervejaria e fomos lá inspeccionar se batiam certo.
1. A cervejaria tradicional é um restaurante fresquinho.
Hmmm, não. O Sem Vergonha foi alvo de um redesign engenhoso mas não deixa de ser um anexo com amplas janelas soalheiras nas traseiras de um prédio. Talvez por isso – ou porque o ar condicionado estava desligado – não senti esse arrepio que faz as pessoas insistir na frase mais vezes ignorada pelos empregados (“Podia baixar o ar condicionado, por favor”). Outra opção é comer nas mesas da esplanada, um deck com pinta de lounge onde se ouvem covers suaves de hits da rádio.
2. Os empregados devem vestir camisa branco-sujo, colete e calça preta.
Nada disso. Aqui, estamos em tasca-moderna-style, moda Campo de Ourique 2018. A farda é azul marinho, a fazer pandã com as ilustrações de motivos piscícolas nas paredes, muito bonitos – e que casam bem com o mobiliário em madeira clara.
3. À vista de todos, na sala principal, deve estar um aquário grande com grandes crustáceos a acasalar.
Também não. Apenas vi uma pequena banca com uns quantos seres marinhos já estéreis. Mas a carta tem uma variedade interessante de bichos, do lavagante às bruxas (não havia), da santola à gamba da costa. Num almoço em dia de feriado, provaram-se duas ostras (3€ cada), ambas frescas e saborosas, com a concha bonita mas recheio diverso: uma carnuda e a outra magrelas. A seguir veio a casquinha de sapateira (7€), um cremezinho insípido e mal fornecido de carne; e o carabineiro frito (165g), descascado, com a tripa agarrada e uma textura já partida, porventura fruto de congelação (16,5€).
4. Sobre a toalha de papel devem pousar, logo no início da refeição, tostas, tremoços, manteigas e croquetes.
Check, check, check. A toalha é de papel, aqui em versão individual com motivos. No couvert, apareceram azeitonas boas misturadas com tremoços em azeite e orégãos; e um bom queijo de ovelha amanteigado. Só o croquete (2€ cada) surgiu mais tarde, mas bem, acabado de fritar e seco, com maionese portuguesa ao lado.
5. As imperiais devem voar nas bandejas de empregados equilibristas e cair na mesa com estrondo, mesmo antes de o cliente as pedir. O respingo de cerveja na toalha não é penalizado.
Negativo. A maioria das pessoas, em almoço familiar alargado, estava a beber regradamente de garrafas de vinho em seus frapés. Os empregados eram miudagem tenrinha, simpática e cautelosa, sem habilidade para fazer voar um cocktail que fosse (sim, também aqui os há).
6. No cardápio, devem figurar saladinhas de cenas do mar.
Figuram. Ah, espera, mas levam ambas alface! (uma de gambas, a outra de atum braseado). Desclassificação. Saladinhas de cervejaria têm proteína, azeite e vinagre – no limite, aceita-se o polvo ou as ovas com um tomatinho, pimento e cebola. Folhagem, jamais. Perante o vazio neste capítulo, entrou-se nos principais com umas lulinhas mínimas fritas em frigideira com óleo, o alho laminado bem puxado – muito saborosas mas a pecar do mal recorrente nestes micro-moluscos: vinham com areia. Desagradável.
7. O peixe deve ser simplesmente grelhado e servido em travessa de alumínio.
No dia da visita (recordo que era um feriado) não vi nada de muito exuberante na montra, só uns robalos e umas douradas de tamanho médio, salmonetes desmaiados e pouco mais – e por isso aceitei a sugestão das sardinhas (que não estavam expostas). Apareceram em travessa de louça, numa geometria entrelaçada, com batata nova e salada de pimentos assados (pouco assados), a pele do peixe já meio sumida, meio cozida, ainda assim saboroso.
8. Nas carnes deve haver um prego, um bitoque e um bife do lombo.
E tudo havia no Sem Escolhas. Aconteceu, no entanto, o empregado levar-me para uma alternativa: o rib eye (21,50€), com focos de gordura saborosa e uma maturação discreta, veio bem assado, já cortado em tiras sobre uma tábua (tendência 2015).
9. As sobremesas devem ser industriais e estar expostas num frigorífico na sala.
“É tudo preparado pelo nosso chef ”, galvaniza-se a empregada brasileira, ali a fazer um “extra” naquele dia. Quem é o chef? Leio na imprensa especializada que é Carlos Carneiro e que esteve 15 anos no Porto de Santa Maria, no Guincho. Vou pela tarte de avelã gelada e vou mal. Oito euros por um torrão de açúcar glacial é demais, mesmo que seja de chef.
10. A conta deve deixar o cliente num pânico contido.
O marisco é caro, o peixe é caro. Muitas vezes, as pessoas iludem-se por estarem num sítio com o cognome “cervejaria” e abusam. Quando pegam no papelinho com a conta, exclamam interiormente: foda-se, esta merda foi cara. Ora, neste Sem Vergonha há coisas inflacionadas, mas consegue-se comer por 25 euros. Haja tino.
Notas finais: Este Sem Vergonha chumba nos requisitos para cervejaria. Diria que é antes uma tasca moderna com secção de mariscos – que tem alguém na cozinha que sabe o que faz e um ambiente luminoso, bonito e arejado.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.