Já sabia que Lula da Silva tinha aqui almoçado, em 2022, quando visitou Lisboa pela última vez. Mas desconhecia que o restaurante tinha sido também frequentado por políticos nacionais. Numa das paredes da pequena sala na cave do bistrô de Campo de Ourique, estavam fotos de Durão Barroso, Carlos Moedas e António Costa – sempre acompanhados do anfitrião, um ex-banqueiro brasileiro.
O que atraiu tantos políticos? Era o que iria tentar perceber nas duas horas seguintes.
O sítio anuncia-se como restaurante-galeria, dando atenção especial ao artista modernista que pôs o nome à casa, Cícero Dias, brasileiro refugiado em Lisboa, fugido da Alemanha, durante o nazismo.
No dia em que lá jantei, a sala onde me instalei estava vazia, o que me deu foco para apreciar os quadros e saborear o menu de degustação.
Ao todo, foram sete momentos, contando com os amuse-bouches do arranque. Apesar da origem dos proprietários e da cozinha ser brasileira, o menu está cheio de França, país onde oficia a chef que criou a carta, Alessandra Montagne. Na carta, lemos “velouté”, “beurre blanc”, “poitrine”, “praliné”, “mignon”, “champagne”.
O aroma mais brasileiro surge no arranque, com miniaturas de pão de queijo e caviar, coxinha e, fora do tema, um pastel de nata de couve-flor. Magnífico o pastel de couve-flor, menos impressionantes a coxinha e, sobretudo, o pão de queijo e caviar. Já vi caviar em cima de tudo – e, na verdade, haverá poucas coisas em que ele assente mal. Mas, se é para ser luxo, convém que o caviar tenha frescura e possamos sentir claramente as ovas, bem definidas. Não foi o caso.
Estava dado o mote para o resto da refeição: coisas boas alternando com coisas menos boas – o que causa algum desencanto, se pensarmos que estamos a falar de um preço médio por refeição que dificilmente custa menos de 100 euros e facilmente fica acima disso.
A pré-entrada foi outro exemplo de relativo falhanço. A combinação fez sentido: dióspiro, ricota fumada e botarga (ovas secas e salgadas de tainha): doce e salgado, a frescura da fruta e o conforto do queijo. Mas o dióspiro revelou-se já sem sumo, mortiço, talvez porque estejamos no fim da época do fruto, e em quantidade excessiva na relação com a ricota.
A seguir, o céu. A velouté de cogumelos era França no seu melhor. Uma mousse fofa como uma nuvem, a saber a bosque e a palácio, por cima um caramelo leve dos fungos – um prato cheio de elegância e sumptuosidade, que calhou bem com o momento do pão: brioche e manteiga, esta servida à parte, com “origem nos Açores, mas fumada”, segundo informou o serviço de sala.
Avançámos para o risoto de cevada, bisque e carabineiro, e baixou-se outra vez o nível. O risoto estava insípido, com a bisque pouco intensa, sendo que a cevada pedia a pujança do molho de mariscos. Mesmo o carabineiro, que parecia ter sido cozinhado em sous vide, apesar de saboroso, vinha com a “tripa”, algo que um inspector de guia de pneus desclassificaria sem piedade.
A terminar os salgados, a poitrine de porco era um cubo de barriga de porco, acompanhada de puré de aipo de bola e uma mini beterraba assada. A carne foi mal finalizada, tudo mole, a gordura entremeada em estado de gelatina enjoativa e a pele sem estar estaladiça: ou seja, um prato que não devia ter sido servido.
Nas sobremesas, figos em três modalidades (compota, mousse, gelado). Faltou a textura de figo fresco, ao natural, agora fora de época. Tudo bem feito, mas o conjunto pouco fresco para pré-sobremesa. Por fim, eis uma criação deliciosa: praliné de avelã com chocolate e fava tonka, absolutamente perfeito, untuoso, emocionante e cheio de finesse.
O serviço revelou uma formalidade simpática. Correcta a descrição dos pratos, insegurança nos vinhos, deixando evidente a falta de um sommelier.
À saída, estava relativamente satisfeito, o que não é suficiente quando se pagam mais de 100 euros.
A questão permanecia: o que fazia tanta gente importante descer à cave do Cícero, quando há outras alternativas mais interessantes e divertidas na cidade? E onde estavam os clientes normais?
Fui investigar mais e descobri que estamos perante um restaurante de anfitrião, desses que se fazem anunciar na sala. O proprietário da casa é Paulo Dallo Nora, economista e ex-banqueiro brasileiro, fundador do extinto Banco Gerador.
Segundo notícias da imprensa brasileira, Dallo Nora mudou-se para Portugal depois de enfrentar processos judiciais relativos a burla e fraude no Brasil. Na imprensa portuguesa, em especial no Diário Notícias Brasil, por sua vez, tem surgido como um filantropo, apostando na promoção da cidadania, das artes e da aproximação entre Portugal e o Brasil.
Hoje em dia, o empresário anuncia-se no Linkedin como especialista em “relações governamentais”, “advocacia” e “estratégia”, mas apresenta o seu “restaurante-galeria” Cícero como a sua ocupação principal.