Rissol é nome de coisa feliz. Tem alegria inscrita na fonética. Tanto que, mesmo cedilhada, a palavra continua luminosa – riçol. Riçol é sinónimo de redanho, outro nome para a gordura que envolve os intestinos do porco; donde, o torresmo do riçol. Reparem como o som muda tudo: riçol é nome de iguaria que se agarra com dois dedinhos, redanho soa a porcaria que se agarra debaixo das unhas. Redanho, já agora, é também nome para uma rede de pesca que serve para apanhar camarão, que por sua vez serve para enfiar no rissol – mas isso já é ir para fora de pé. Voltemos ao início. Rissol é nome de coisa feliz. É por isso especialmente triste encontrar tanto mau rissol, desgraçadamente industrializado, recheio processado, óleo saturado.
É também por isso que continua a valer a pena regressar ao Colina, restaurante que por vários anos figurou no Guia de Restaurantes Time Out, sempre com o mesmo recado: “obrigatório provar os rissóis de camarão”. Por aí, nada mudou. Esta refeição começa com um exemplar perfeito, que me reconcilia com a alegria do rissol e redime anos de azias sofridas com meias luas molengas e gordurosas. É pequeno mas bojudo, chega acabadinho de fritar, massa firme e enxuta, recheio cremoso a envolver um só camarão inteiro, grande e carnudo. Uma felicidade.
São 20.30 de uma segunda-feira à noite e a casa está à pinha. É um bom indicador de consistência para um restaurante clássico de bairro. Vejo muitos estrangeiros encaminhados por concierge de hotel, é certo, mas muitos indígenas também. Entre eles, o Xô Tôr, que conhece a ementa de cor e a casa de ginjeira. O Xô Tôr, cliente antigo, é conhecido do Xôr Zé, empregado antigo, que lhe decorou as preferências e lhe zela pelos interesses.
– Xôr Zé, hoje vou na garoupa.
– Não, o Xô Tôr hoje não quer a garoupa.
– Não quero?
– Não quer não, Xô Tôr.
– Pronto, quem manda é o Xôr Zé.
Assisto à cena com uma certa inveja, que cresce à medida que o jantar avança. Tivesse eu o insider trading do Xô Tôr e talvez tivesse sido poupado ao bacalhau à Braz. Chega seco, o peixe desfiadíssimo e deslavado, os ovos clarinhos sem sabor, a batata palha manhosa de pacote. As batatas fritas da casa, a propósito, são ultracongeladas e nem sequer daquelas melhores. O pão é uma desilusão, bolas brancas e farinhentas sem jeito nem justificação. E já que estamos com a mão na massa, vamos ao padeiro, que se diz responsável pelo cabrito, uma das especialidades de casa. Dou-lhe o desconto de, por falha de comunicação, ter vindo para a mesa a vitela à sua moda, e não o cabrito, como era minha intenção. Mas a carne, fatiada, chega rija, fibrosa e rapidamente se apaixona pelos meus dentes. Quanto ao preceito “à padeiro” é desenxabido, traz gordura a mais, sal a menos, e sugere-se harmonização com uma água das pedras.
Perguntam vocês: mas ó Zé, a casa descambou, foi? Não diria tanto. Limito-me a concentrar num parágrafo tudo o que me custa aceitar num restaurante com estes pergaminhos de boa comida tradicional portuguesa e, já agora, com estes preços – o ticket médio de uma refeição poupadinha não baixa dos 25€, e o tal cabrito, por exemplo, pula 23€. Acresce que o Colina tem uma carta permanente de uns 60 pratos, fora entradas, entre propostas fixas e do dia, e as boas notícias não se ficam pelo rissol.
De tudo o que se provou, uma palavra de apreço para as gambas, que já tinham dado o ar da sua graça no rissol e que cozidas mostram todo o seu valor (45€/kg, para sermos exactos). Mas sobretudo para os filetes de polvo com arroz do mesmo (19,80€). Bom tempero e óptimo polme a envolver tentáculos tenros de bicho graúdo, daqueles capazes de adivinhar resultados da bola, e o arroz cheio do mesmo, meio malandrinho, o bago no ponto, a acidez bem calibrada. Nada a apontar.
De sobremesa, estou de olho na Charlote à Colina. O Xô Tôr também.
– O Xô Tôr não prefere a Montanha de Claras?
– Ai prefiro?
– É segunda-feira, sabe... Acho que prefere.
– Pronto, o Xô Zé é que sabe.
Sendo assim, também prefiro. A montanha faz jus ao nome e chega bem para dois, uma ladeira para cada um. É meio molotoff, meio pudim, muita molhanga industrial com aroma de baunilha, e um crumble de amêndoa picadinho por cima. Eu achei assim-assim. O Xô Tôr gostou muito.