Nem sempre o crítico consegue experimentar o restaurante como devia. As circunstâncias numa cozinha mudam ao ritmo das pessoas e as pessoas das cozinhas são cataventos sobre lodo, quando não sobre chamas. Ora, no Copo Largo consegui duas refeições perfeitas para testar condições extremas.
Primeira situação. Eis-me solitário e atrasado, depois de um dia a domar os filhos. Chego e está-me destinada a mesa em cima da porta, uma porta com um mecanismo maluco que crianças do jantar de grupo teimam em pôr à prova. Vinho, preciso de um copo de vinho. “Só temos uma marca”, atira o dono e anfitrião, Filipe Ramalho. O copo não é largo e a marca não inspira. Oh, diacho.
Comes há muitos, todos escritos na ardósia da pequena sala. O espaço é caseiro e fofo, uma cómoda e quadros de pintassilgos e animais de quinta pintados pelo chef de sala, com a cozinha ao lado e vista aberta para o talento culinário de Miguel Rodrigues, também conhecido como Viking Suliano, nativo de Almada com genética nórdica.
Chega o croquete e com ele a notícia de que há um tinto de Colares aberto na cozinha que pode ser partilhado. Amoroso. Muito agradecido.
Escolho mais dois acepipes. Ao croquete, servido dentro de pão brioche em cima de uma poça de jus (molho de carne e legumes, reduzido, muito reduzido), junta-se uma cavala curada (muito curada) com beterraba e isca de fígado de tamboril (muito fígado). Está tudo bom, mas está tudo muito. Ainda com o óleo do peixe agarrado ao céu da boca, atiro-me ao bolo de mel e gelado de poejo, o bolo esfarelado e seco, o gelado fresco.
Jantar bem, sem deslumbrar, até porque as expectativas, provocadas por críticas exclamativas, eram altas. Pagam-se 35 euros.
Segunda situação, cinco dias depois. Jantar de aniversário de uma amiga. Mesa corrida de um lado ao outro da sala principal (há outra micro-divisão ao lado), véspera de feriado. Tem tudo para correr mal. Corre tudo muito bem.
Os pratos e as cervejas vão chegando e vão sendo partilhados, sem um ritmo avassalador, mas o suficiente para nos manter entretidos e felizes. Provo grande parte da carta. Cabidela de lebre. Batatas fritas com carne de alguidar. Choco assado em vinagre. Xerém de camarão. Arroz de berbigão e corvina. Açorda de cação. Rissol do mar em massa fresca. Tudo bom ou óptimo, temperado no ponto, cozinha portuguesa do século XXI sem pretensões mas com génio, o que se inventa funciona, o que não se inventa também e, no fim, há aguardentes caseiras para animar a malta. Pagam-se 20€. Mesmo a dividir pratos, sem sairmos cheios, é coisa rara.
Em síntese. Dois testes de esforço, dois dias, duas experiências boas, a segunda melhor ainda. Este Copo Largo bebe do falecido Salmoura, que bebia do Sal Grosso, ambos em Alfama, mas é ainda mais bonito e agradável. É cozinha potente, saborosa, por vezes genial. É cozinha portuguesa pela geração pós-Maria de Lourdes Modesto, pós-Avillez, pós-Michelin.
Gostava de um serviço de vinhos mais ambicioso (tem uma mescla de naturais e semi-convencionais, mas com os nomes do costume), gostava sobretudo de mais vinhos a copo, que não tem de ser largo. E, talvez, de mais delicadeza e até loucura na cozinha, porque me parece que Viking Suliano é homem para isso.
De resto, Miguel Rodrigues e Filipe Ramalho já têm aqui uma belíssima casa. Com preços decentes. Para portugueses. Nós agradecemos. Do coração.