A noite acabou. Pelo menos como a conhecíamos. Já não há cá bora jantar ao Chiado e depois digerir na Bica e depois aquecer no Cais e depois dançar ridiculamente no Lux (dopado). Agora tem de se dar tudo entre as 18.00 e as 22.30. E pode ser em qualquer lado. Pode ser na Madragoa.
O Da Noi está na Madragoa, o sítio onde os boémios da Lapa gostam de ir fazer barulho. Fica numa esquina idílica, fachada de azulejos tradicionais, postal de Lisboa. E tem postigo para a rua. No postigo podemos começar a noite – a festa, não há tempo a perder – a beber um Negroni de rosmaninho ou um Old Fashion feito com whisky Maker’s Mark. [O Maker’s Mark na verdade é um whiskey com “e”, ou seja, um bourbon, mas gosta de se chamar whisky por causa da ascendência escocesa. Já agora, é um bourbon com milho e trigo, sem cevada, nisto distinguindo-se do Jack Daniels, essa memória adolescente ao som de Jim Morrison, que Deus o tenha – ao Jack, não ao Jim, naturalmente].
Os restaurantes com postigo e bar aberto para a rua são uma maravilha (para quem não é vizinho). Paris tem-nos há muito e talvez por isso haja um certo ambiente de Marais neste Da Noi e uma certa comunidade de expats (só dois portugueses, eu incluído). Ajuda que a Rua dos Machadinhos seja uma viela empedrada e estreita onde só passam TVDE e que permita estar ali na palheta sem trânsito nem vendedores de orégãos prensados, como acontece noutras colinas da cidade.
No meu caso, já cheguei tarde. Às 20.30, no arranque da semana, o sítio estava esgotado e havia pessoas a lutar pela melhor mesa. O burburinho ouvia-se longe, em parte porque a música soava como num bar a despertar.
Não sou contra música alta em restaurantes. Restaurantes não são comedouros. Nem templos culinários. Podem ser, mas não têm de ser. Restaurantes servem para restaurar e uma pessoa tanto se restaura a abanar o corpo ao som de Kanye West enquanto come barriga de porco com batatas fritas (já lá vamos), como numa degustação Michelin de 12 pratos, pano de linho ao colo e música de elevador nas colunas.
Há sítios onde a atenção deve estar toda no prato, há outros onde é bom que isso não aconteça. Você escolhe. Neste Da Noi é assim: se lhe doer a cabeça ou andar ensimesmado com o sentido da vida ou tiver aterrado de um retiro de mindfulness, não será o lugar certo. Mas se a ideia for fazer uma festa com amigos, em horários pandémicos, picando daqui e dali, limpando as vistas e o palato com cocktails e vinhos acima da média (incluindo naturais), então o Da Noi é uma opção.
A primeira impressão foi a de estar num JNcQUOI de bairro, mas talvez tenha exorbitado, sabendo que a gerência passara por lá. São dois jovens, esforçados e presentes, com escola de hotelaria e passagens por casas sofisticadas. Um deles acolheu-me e serviu-me, nem sempre confiante e rigoroso. Quando questionado sobre os ingredientes do feijão branco com cacio e pepe, por exemplo, atirou uma frase que não ouvia há uns 20 anos. “Isso é segredo.”
O segredo não abalou a minha convicção de que eram leguminosas de salmoura comercial, nem que o prato estava guloso e bem feito, porventura apenas com essas duas coisas misteriosas que fazem o cacio e pepe: pecorino e pimenta preta.
De resto, a comida faz este compromisso entre pratos práticos e diversificados, com bons clichés de bistrô capazes de agradar a muita gente – de burrata a coração de alface grelhada, de linguini negro com polvo a franguinho com mel e tomilho, de foie gras a pak choi com chalotas e avelã.
Não se espere os gnocchi mais originais, mas confie-se na rillette de salmão, aneto e alcaparras: clássica, saborosa, com tostas feitas ao momento. E para quem estiver faminto, melhor será atacar a entrecôte com as batatas fritas (caseiras, finíssimas, óptimas) do que a barriga de porco (entremeada assada à moda do leitão, terminada com uma entaladela e uma bola de molho “sambal”, na verdade um chutney dulcíssimo que só lembra o sambal depois de bebermos três Mezcal Margarita).
Em síntese. No final, é comida com música e pessoas a falar alto. E resulta. O restaurante trendy de bairro existe. A coisa que mais me chateou, mesmo, foi terem dado cabo do tiramisù: não se brinca com o mascarpone.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.