“Chefs que gostam de má música não sabem cozinhar.” Quem o diz é o britânico Adam Purnell, que deixou Berlim este ano para abrir no Cais do Sodré um listening bar que garante ser “um restaurante a 100%”. A descrição pode ser confusa, mas de forma simples e resumida o Dahlia é o sítio aonde se vai para ouvir música (vinil, apenas), através de um sistema de som clássico e de alta qualidade, para beber um bom vinho natural e comer o que a época tem para oferecer. Apesar de o foco parecer estar na música e nos vinhos naturais, com uma carta com cerca de 30 referências (portuguesas e de países como França, Espanha, Itália ou até Nova Zelândia), a comida é preparada com todo o cuidado e técnica. “Todos os dias, os chefs vão ao mercado, temos fornecedores locais, usamos tudo o que é da época e o mais local possível”, garante Adam. Na carta, há três entradas, quatro pratos de vegetais (todos disponíveis em opção vegan), quatro pratos de carne e peixe e duas sobremesas. “Não é uma lista gigante.” Até porque mudará conforme os ingredientes da estação.
Crítica
Houve duas coisas que eu não disse ao meu amigo, quando optei por ir ao Dahlia. Uma foi que era um listening bar; a outra que ele podia ter de se sentar num banquinho.
Mal chegou, o Pedro, 50 anos de idade, ficou a olhar para o assento, uma rodinha curta para o seu rabo. “Vou-me sentar nisto, é isso?”, lamentou. Eu já lá estava, mas no sofá confortável, encostado à parede. “Preciso de ver o ambiente, desculpa”, justifiquei-me.
O ambiente era todo mais novo do que o Pedro. Jantar de amigas expats à esquerda; encontro de Tinder ao fundo; casal de jovens turistas holandeses à direita; date profissional ao balcão; grupo tuga de camisas tropicais junto à porta.
Apesar da pandemia e da guerra, mais estrangeiros do que portugueses, o habitual em casas do Cais Sodré com factura nos 30€ e discos vinil na prateleira. De resto, gente com boa onda, que se olhou ao espelho antes de sair de casa, que arriscou na blusa e que fez a dobrinha na bainha das calças.
A segunda questão com o nosso cinquentão demorou uns minutos a manifestar-se. Já tínhamos aviado a beterraba com laranja e vinagrete de pistáchios (bem boa, mesmo para pessoas que não gostam de legumes a saber a terra); e passáramos de rompante pelos bao do dia, bolinhos com cogumelo-ostra no interior (já os terei provado, noutro sítio: saborosos, ligeiramente insossos). Eis, então, que o meu amigo assinala: “Bom sistema de som”.
Ainda que o Pedro dispare ironias ao ritmo de uma máquina de bolas de ténis, de início, não percebi. É que o som era de facto muito bom, amplificador analógico e tudo analógico, daqueles que custam centenas de euros e estão ligados a colunas sem Bluetooth.
Na origem do projecto, inaugurado no Verão passado, está o inglês Adam Purnell, com passagem por Berlim. Passagens por Berlim, como sabemos, são currículo para quem quer fazer coisas progressistas nesta cidade (nem sempre boas). No caso, juntam-se à experiência de Berlim visitas ao Japão, onde os listening bars são comuns.
Li, nesta revista, que não se trata de um restaurante onde se ouve música, mas sim de um bar onde se pode beber vinhos naturais e comer. A música, aqui, está no centro do conceito, sem distracções, sem scratching, sem DJ recrutados de agências de modelos. Os discos são para ouvir do princípio ao fim, as luzes são baixas, só o mínimo para acertarmos com o garfo na couve-flor assada (demasiado cozinhada) com cacau e kimchi.
Comuniquei isso mesmo ao meu amigo, com aquele ar de quem é mais novo e actualizado. “Um listening bar com música muito alta”, ripostou o Pedro, agora já sem filtro, enquanto mordia o seu camarão salteado com molho de coco (“este é bom”).
Sobre os vinhos naturais, a lista tem mais do que as banalidades do costume. Inclui escolhas de produtores normalmente ausentes desta categoria, como o Chumbado, da Quinta das Bágeiras, e viaja até Espanha, Geórgia, Nova Zelândia e Austrália. Não é uma lista enorme (nove brancos, oito tintos, três com bolhinhas), mas é seleccionada.
Já no final da noite, quando os decibéis subiam, o Pedro gritou: “Acho que já não temos idade para vir a estes sítios”. “Eu tenho”, respondi, porventura rejuvenescido com as últimas gotas da garrafa de Phaunos (Aphros, casta Loureiro com maceração das películas, sem ser desses laranja mais carregados).
Em síntese. Tenho dúvidas de que as pessoas vão ao Dahlia por causa da colecção de vinis. Mas o sítio tem um compromisso raro de bom som, boa gente, bons vinhos e boa comida. Quanto aos preços, quer dos líquidos quer dos sólidos, são razoáveis, tendo em conta a conjuntura e a inflação que atingiu a Baixa.
Haja sofá!
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.