Quanto vale um bom empregado de mesa? A questão ocorre no fim da refeição, depois de ter pago quase 70 euros (calma, calma, o crítico tem de provar muita coisa), já a crème brulée no fim e eu basculando uma colherada de uma bochecha para a outra, nada de dentes, só aquilo a desgastar-se lentamente nas papilas até se transformar em saliva doce.
O rapaz nem é um prodígio de correcção ou conhecimento, mas conseguiu convencer-me a comer um pouco de tudo. Porquê? Porque transmitiu a ideia de que já experimentou os pratos todos; e que os adora a todos. Ajuda, naturalmente, que a comida seja boa e ele não tenha que encenar nada.
O conceito da carta é saudável-de-chef e faz sentido. Estamos em cima da Avenida da Liberdade, a Max Mara e a L’Agence ao lado, lá fora um frenesim de executivos com botões de punho e pessoas apressadas, cá dentro o mesmo. Sem surpresa, os pratos mais populares são as saladas. Escrevo “saladas” porque é assim que elas estão classificadas no menu, mas é como se me obrigassem a ver o vídeo-excremento do CM em looping, uma náusea. Salada – no século XXI, em Lisboa– significanormalmente um pratalhão de alface e rúcula de pacote com umas coisas por cima para dar nome na ementa e fazer parecer que não é tudo alface e rúcula de pacote. Está, portanto, mal classificado este menu. Na verdade, o que se come no Delidelux da Avenida, irmão mais novo do Delidelux de Santa Apolónia, não são saladas. São pratos frios como raramente os provámos nesta cidade.
Pensando no calor que anda aí, por exemplo, eu não consigo imaginar nada mais refrescante e saciante do que a salada de tomates e mozarela, equilibrada com óleo de avelãs, balsâmico de figo e azeitonas kalamata. Os cuscuz também acabam com essa ideia de que não passam de comida de franchise healthy, grumosos e sensaborões e com cheiro a frigorífico. Acompanham frango em molho teriyaki, curgete, beringela, mas são os óptimos pistáchios que fazem brilhar tudo. A compor o trio saladino da prova, legumes grelhados com ras el hanout, espécie de caril do magrebe que alguns chefs andam a usar como se fosse sal, composto por uma dúzia de especiarias, entre as quais cravinho, sementes de coentros, malagueta, cominhos e açafrão.
Fora da categoria das saladas, mas continuando nos pratos frios, ainda se testou o tártaro de novilho com maçã – notável, ainda para mais porque acompanhado de um extraordinário copo de vinho branco biológicoda Quinta do Romeu. A carne sem vestígios de gordura, finamente picada à faca, pedacinhos minúsculos de maçã e avelãs, outra vez os frutos secos a atirarem o prato para outra dimensão. A acompanhar, espuma de aipo e maçã – a cumprir a função de nos recolocar na horta e fazer esquecer o pecado da carne vermelha, no fundo o bem a conviver com o mal, representação gastronómica da vida de tantos de nós.
A terminar, só porque o empregado arregalou os olhos como um miúdo perante um saco de gomas enquanto falava do assunto, o magret de pato com arroz malandrinho, prato de substância, minicubinhos de chouriço e queijo da Ilha por cima dos bagos a nadar num cremoso de cogumelos shitake. Tudo isto acontece num espaço muito bonito, com mesas de mármore branco e alguns pormenores já vistos nos restaurantes da Multifood (Honorato, Alma, ZeroZero, Tapisco...). A empresa comprou a marca há uns anos mas segurou a filosofia fundadora, a saber: ter um espaço de produtos de qualidade de todo o mundo, que é também uma garrafeira viajada, onde há comida leve para pessoas leves.
Nesta loja da Avenida, o restaurante vale mais do que a mercearia, não só pela dimensão como também pela cozinha, aqui idealizada pelo muito sólido chef Luís Gaspar, da Sala de Corte.
Chegados aqui, tínhamos matéria para andar perto das cinco estrelas. Qual é o problema? O problema é que o mundo pode ser um sítio injusto para pessoas que adoram comer bem mas não são turistas endinheirados nem portugueses ricos. Um almoço normal neste Delidelux, para duas pessoas, pode não ficar em 70 euros, como foi o caso, mas dificilmente anda abaixo dos 50, 60 — o que, mesmo admitindo a excelente qualidade da comida, é demasiado. Lembrar que estamos num restaurante-mercearia, onde há pessoas a entrar e a sair com queijos na mão e saladas para levar (existe uma vitrina de grab and go).
Provavelmente, as contas da Multifood estão bem feitas e o valor obedece à aritmética da restauração. O problema são as rendas e o preço da comida e a Madonna e o mundo.
O problema somos nós, todos os que não são ricos ou empregados de mesa.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.