Uma ostra pode ser uma coisa magnífica, no sentido de nos deixar a pairar de felicidade; ou pode ser uma coisa terrível, no sentido de nos deixar colados a uma sanita. Já me aconteceram ambas as coisas e ambas as coisas fazem parte do ofício. O que é inédito é isto: a ostra que abriu a refeição no Edmundo, restaurante famoso pelo marisco, vinha afogada numa salmoura, qual salina.
A culpa não foi certamente da ostra (não há ostras assim no mar), mas do que lhe terão feito. Palpite: alguém agarrou num bocado de cloreto de sódio, misturou-o com água e encharcou o pobre bivalve. O truque do sal é conhecido e serve para dar sensação de mar ao marisco. Um erro: uma ostra, uma boa ostra, já tem sensação de mar de sobra.
Infelizmente, esta não foi a única parvoíce perpetrada pelo Edmundo, num almoço em que até se jogou à defesa. Depois do episódio, não arrisquei nas amêijoas à Bolhão Pato (japonesas do Sado), que o Tim, dos Xutos e Pontapés, a Mafalda Veiga, mais um grupo de amigos sugavam na mesa da ponta. E também não toquei nas sapateiras e lagostas (africanas) arrumadas ao lado, já falecidas.
[Uma cervejaria-marisqueira não ter aquários com crustáceos é triste e é perigoso. Caso os tenha escondidos, ainda torna menos compreensível que os bichos estejam ali mortos, a definhar, em exposição.]
A mesma desilusão relativamente aos peixes da vitrina, quase só douradas e robalos de tamanho uniforme, salmão, nada com brilho, nada que fizesse bater o coração.
Perante isto, optou-se por uma escolha segura: salada de polvo. Parecia já ser da véspera, o que não é forçosamente mau. Estava saborosa, com azeite decente, pouco vinagre, o polvo tenro mas com as peles, pickles de cenoura e couve-flor, pouco pimento, pouca cebola. Comeu-se bem, sem deslumbrar.
Daqui seguiu-se para os pratos principais. O amigo que me acompanhou, jornalista da velha guarda, tinha nostalgia do naco na pedra. Contou-me que há uns anos, ele e outros camaradas, depois de fecharem a edição do jornal do dia seguinte, costumavam rumar ao Edmundo para encher o corpo de cerveja, uísque e proteína animal, antes de seguirem para um buraco qualquer no Cais do Sodré.
O Edmundo era, então, um dos muitos sítios com a inovação neolítica do naco na pedra. Na década de 90, por todo o lado abriam restaurantes com a brincadeira, uma experiência particularmente dolorosa no Verão: as pedras aqueciam as salas como pequenos braseiros, às vezes dezenas deles em simultâneo, o ar ficava denso, uma nuvem de fumo sanguíneo, o ambiente um misto de matadouro e churrasqueira.
Sem espanto, a pedra não proliferou, mas manteve alguns adeptos. Hoje, é uma comida retro e ainda pode ser degustada um pouco por toda a cidade, de Carnide à Rua do Sol ao Rato, passando por esta esquina de Benfica. Come-se um bife na pedra como quem canta Sinéad O’Connor numa Revenge of the 90s, “Nothing compares to you”, trálálá.
Era mais ou menos isto que dizia o olhar do meu amigo ao deparar-se com o naco no menu. “Olha, o naco na pedra”, disse, e os seus olhos reluziram. Ainda lhe expliquei – em vão – a ciência por trás do flop. A pedra é uma fonte de calor sem capacidade para se regenerar: vai sempre arrefecer. E a carne grelhada precisa de muito calor e precisa que o líquido dentro dela escorra para longe. Com a pedra, pelo contrário, esse líquido assenta na base do bife, cozendo-o em vez de o caramelizar. Naturalmente, tudo isto é atenuado pela sensação de domínio técnico de um macho a cozinhar a sua própria comida: o acto de temperá-la de sal (no caso, grosso, vulgar), a ilusão do churrasco, o toque final (maionese ou molho cocktail manhoso). Uau, “Nothing compares to you”, siga o naco.
“A carne até é saborosa”, comentou o meu amigo, referindo-se ao pojadouro, que veio numa peça alta e gorda, serrada por nós em fatias finas, à maneira da picanha. De resto, tudo o que era previsível acontecer aconteceu, o sangue saiu todo cá para fora, borbulhando na pedra, as últimas fatias já resfriadas, carne cozida e sangue frio.
Ao mesmo tempo, aterrou na mesa outro prato afamado da casa, pilim com açorda: carapaus do tamanho de um mindinho, fritos em espetos, acompanhados de açorda à alentejana. “Ena, ena, temos petisco”, pensámos. Nem tanto. A açorda deve ter sido feita com o mesmo pão do couvert, bolinhas áridas inchadas de fermento. Estava quase líquida, sem consistência, só praticamente o sabor dos coentros. Aos infantes carapaus, por sua vez, faltava-lhes um óleo mais quente e mais limpo; e tinham outro problema: areia, muita.
Restava a sobremesa. O desastre estava à beira do fim. Por sugestão do empregado – atento e simpático –, dirigimo-nos para a tarte de nata. É caseira?, perguntei. “É sim”, respondeu, confiante, para depois concretizar. “Quer dizer, é um senhor de fora que faz só para nós”. Venha a tarte do senhor. Era igualzinha a outras tartes de outros senhores, um tijolo monótono, gelado, lácteo e semi-industrial, com serradura de bolacha Maria.
Em síntese. O novo Edmundo foi renovado e está bonitinho e confortável, mas parecido com muitos outros restaurantes, tendo perdido o antigo encanto de marisqueira antiga. A cozinha, que já definhava, mostra-se apostada em produto de baixa e média qualidade, tratado sem arte e carinho. A única razão para ainda ter tanta clientela só se compreende face ao bom tamanho das doses e à pobreza culinária que grassa em Benfica, bairro com tantos outros encantos.
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