Duas horas depois de me ter sentado, revejo os pratos e os apontamentos. Foram dez comidas – incluindo três amuse-bouches, pão e dois doces. Nem uma falha. Temperaturas correctas. Cozeduras de peixes e carnes afinadas. Coulis, glacés e veloutés consistentes. Proporções e construções bem desenhadas. Tudo perfeito. Cozinha francesa da boa.
Dito isto, não ajudou ter ido ao restaurante sozinho. Mesmo mais composto, o Epur não é para comer sozinho ou com companhia pouco estimulante. A sala é bonita, mas o confinamento e a quietude aborrecem. Depois de analisado o mobiliário nórdico em madeira clara, a navalha Laguiole, os copos Schott Zwiesel e os painéis de azulejos, não resta mais nada para entreter.
É uma pena que a cozinha, embora esteja ali perto e seja bonita, permaneça inacessível. Como é uma pena que, do meu lugar – como dos da maioria, aliás – só consigamos ver uma pontinha do casario de Lisboa, que ondula Chiado abaixo até ao Tejo, uma vista magnífica que as janelas altas bloqueiam.
Não admira, por isso, que aos cinco minutos de refeição a atenção tenha divagado para os mocassins azuis, impecáveis, do homem à minha frente; depois para as Converse da mulher; depois para os diálogos, nada de mais, um casal sereno e maduro num almoço a dois a falar das notas escolares das filhas e das notas de prova (“melhor do que a refeição que tivemos esta semana no Fifty Seconds”).
A comida, por fim, distraiu-nos uns dos outros, mas o atendimento demorou a arrancar. Logo à chegada ao restaurante, ninguém para nos receber à porta. Entrámos, passámos a zona da cozinha, depois uma sala de espera, depois a primeira sala de refeições. Esperámos a ver se alguém acorria, ninguém acorreu. Salvou-nos por fim Ivo Peralta, o sommelier da casa, sorridente, experiente e seguro – a contrastar com os restantes dois empregados de sala, novatos e tensos (Teresa Grilo, a habitual chefe de sala, esteve ausente).
À mesa, também nada aconteceu nos primeiros instantes. A carta chegou 12 minutos depois de nos sentarmos, o primeiro entretenimento de boca aos 20 minutos, o vinho aos 23.
Mas vamos às provas. A começar, abacate com salsa verde e sésamo, com o puré de abacate magnífico e amostardado. O vinho só a seguir. Confiámos na escolha de Ivo Peralta, dois copos para toda a refeição. O sommelier não hesitou, não confundiu, não atrapalhou. Veio o branco Vadio 2017, primeiro, o extraordinário bairradino de Luís Patrão; e na segunda parte o Reynolds Grande Reserva Tinto de 2010, ambos especiais e apropriados.
Ivo Peralta sabe falar até o quererem ouvir, sabe dosear o verbo. O casal mocassin/Converse perguntou sobre o champanhe, ele desenvolveu; eu não mostrei a mesma euforia enófila, ele limitou-se ao essencial, uma sinopse bem feita do produtor e do perfil das uvas.
O segundo amuse-bouche foi uma tira de robalo curado sobre puré de agrião, picante mas suave, frescura, verdura – a preparar o terceiro momento, mais potente: velouté de couve-flor com tutano e trufas, uma almofada de veludo, Farges a ir às origens, cozinha francesa sem barroco.
Como se tornou frequente na alta restauração, o pão só nesta altura chegou: um sem glúten, outro de trigo e outro de centeio, todos caseiros e bons – para barrar com manteiga Rainha do Pico ou azeite Magna Olea, de Trás-os- Montes. Primeira entrada, outra vez alta cozinha clássica: puré de topinambour, salada de pastinaga (cherovia), e uma espécie de mostarda, genial, com emulsão de gerânios – tudo equilibrado, com texturas e harmonia.
Eis então o peixe, um cubo de robalo cozinhado delicadamente, em baixo macedónia coberta por molho de champanhe – um prato que podia ser servido num duas estrelas Michelin da Suíça. Mais difícil de encontrar fora de Portugal foi o segundo prato principal, com porco preto. Tudo bem, jus de viande poderoso, ao lado couve kale, crocante sem ser rija, cogumelos girolles, e ainda um bónus superlativo: a crepinette, ou seja, uma salsicha caseira feita de partes do porco menos nobres muito aromática, saborosíssima.
Por fim, os doces. Mesmo para quem não aprecia sobremesas achocolatadas, a tarte de chocolate, com caramelo e glacé de trigo sarraceno estava excelente. Mas o que ficou na cabeça foram umas bolachas bretãs que acompanharam o sorbet de clementina, duas jóias carregadas de manteiga, com farinha de amêndoa e baunilha. Se as vendessem avulso teria levado para casa, desabafo que tive com o empregado de mesa, que logo se predispôs a cumprir o desejo.
Terminava assim o menu de quatro momentos – com um preço de 90 euros, sem vinhos –, que me parece suficiente para um adulto médio, ainda que haja duas opções mais ambiciosas, de seis (125€) e oito momentos (160€). Ao almoço, pode sempre também pedir o menu Essencial, de 45€, ou o Petit apéttit.
Em síntese. O Epur – nome que pode soar a empresa municipal mas tem origem no verbo épurer (depurar) – é um restaurante com uma cozinha rigorosa e cheia de sabor, de técnica francesa clássica, ainda que depurada e sem demasiados elementos no prato: neste almoço, não houve nenhuma ligação excêntrica, para o bem e para o mal.
Também por isso, o Epur tem tudo para agradar aos inspectores da Michelin e já podia ter feito parte do guia para 2019. É preciso, contudo, lembrar que o restaurante abriu apenas em Maio e a gala foi em Novembro, pelo que teria sido sempre uma chamada em cima do gongo. Aparentemente, Farges teve noção desse timing: em entrevistas após a inauguração, o chef francês, antigo comandante da Fortaleza do Guincho, sacudiu a pressão: conquistar a estrela do guia dos pneus não era o seu objectivo principal; o que queria era ter os clientes satisfeitos e a casa cheia.
Foi uma coisa sensata de se dizer, mas a realidade é tramada. Sabia Vincent Farges que ter a casa cheia, num restaurante com um ticket que chega facilmente aos 100 euros, pode só acontecer com o empurrão da estrela. Sem essa promoção, há o risco de só se darem cinco refeições por turno, como neste almoço. Daqui a um ano – certinho, certinho – não será assim. Outra estrela brilhará no Chiado.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.