Já tinha visto fotos dos robôs-empregados, já tinha lido artigos sobre as cascatas luminosas – mas nada me tinha preparado para as sanitas.
Quem me alertou foi o meu filho adolescente. “Já foste ao WC?”, atirou, logo no início do jantar, num estado de excitação comparável ao dia em que recebeu a Playstation.
O dever chamou-me.
Interrompi o couvert de pão de supermercado reaquecido e manteigas coloridas e fui lá espreitar. Às oito da noite, estava mais gente fechada no WC do Estação Menina Bonita do que nos sanitários do Lux às quatro da manhã.
Mal entrei num dos cubículos, percebi a afluência. A sanita era um misto de cadeira de massagens, bidé e secador de cabelo.
Higienizei a coisa e instalei-me no trono. Estiquei o braço para agarrar no comando afixado na parede. Era um comando complexo, cheio de botõezinhos, mais impenetrável do que o ar condicionado de um hotel.
Comecei por calibrar a temperatura do tampo. Depois, premi tudo à parva. De repente, um jacto atingiu-me o ânus, lá mesmo onde o ânus se faz ânus, misto de toque rectal e agressão pelas costas. Soltei um “aaahh”, repentino e assaltado, e ouvi um risinho vindo da divisória do lado.
Depois do susto, acomodei-me. O repuxo prolongou-se, incisivo, como se tivesse olhos. O controlo de temperatura da água marcava 25 °C, morninha, no ponto.
Lembrei-me então que na mesa já deveriam ter pousado os “langostinos ahogados”, a “burrata com salada de frutos vermelhos” e o “cebiche de pampo”. Não senti urgência. O banho anal terminou, sem aviso.
Faltava secar. Pressionei, então, o botão do “Dryer” e logo um sopro me aqueceu a bacia, qual secador de cabeleireiro invertido. Foi a primeira vez que sequei o rabo com um secador.
De regresso à sala, parecia que toda a gente me observava – e eu questionei-me se estaria com um andar diferente e se teria contraído alguma doença venérea.
Segui em gincana por entre as mesas, cruzando-me com crianças alteradas, casais em busca de fantasia e robôs carregando hambúrgueres e batatas fritas de pacote.
Robôs-gato (tinham orelhas de gato, miavam como gatos) levavam a comida às mesas. A certa altura, dois chocaram de frente, provocando um burburinho preocupado entre os comensais.
No tecto, centenas de candeeiros-bola, a perder de vista, subiam e desciam, espectáculo que um reviewer de fim-de-semana caracterizaria como “dança de luz e cor” e o meu amigo Pitau, de Almada, definiria como “cena bué marada, como se estivesses em ácidos”.
Sentei-me, por fim. Numa cadeira. À mesa.
Os artigos da internet sobre o Estação Menina Bonita apontavam para um armazém nas traseiras de uma oficina de pneus, na zona oriental da cidade, “o restaurante mais futurístico de Lisboa”, “com culinária de 16 países” e “300 lugares sentados”.
Antevia que o foco não estivesse no prato. E assim foi. Comida pré-feita, resfriada, mau produto a fazer-se de fino, empratamentos de florista do Cacém, o menu uma miríade de comidas-cliché, atalhos e processados em barda.
Notas de prova:
Os “langostinos” e a massa “nero di mare”, com mexilhões e camarões, fediam a fénico. A burrata com frutos vermelhos e tomates cereja era um corpo indefinido – nem doce, nem salgado, nem temperado. O “cebiche” surgiu vinagrento, uma máquina de fazer aftas. O “fillet duchess” a armar-se em Wellington, com paté de cogumelos de lata e massa folhada cozida e mole, como se tivesse saído da sauna.
Nas sobremesas, louve-se o esforço literário na descrição do menu. Sobre o Italian Cake: “Uma delícia sensorial gustativa, inspirada nos harmoniosos contrastes de sabores, das mais exclusivas artes culinárias da Nova Iorque italiana. Um momento… uma pausa para relaxar e apreciar.”
Sobre o Ciasto Francuskie, de massa folhada e maçã, receita natural da Polónia: “Os egípcios criaram há milénios… Os suíços deram o uso moderno, mas esta combinação polonesa, que reestruturamos para o seu deleite perceptual, ficará eternamente na sua memória alimentar.”
Nem tanto, caro Luís de Camões.
Deleite perceptual foi o que se seguiu.
Tínhamos acabado os doces e eis senão quando se formou uma cortina de água circular, caindo sobre o bar, instalado no centro do salão. Do interior, qual Rihanna no Super Bowl, elevou-se a vocalista da banda que, até essa altura, tinha estado a tocar no palco ao fundo do restaurante.
“We’re beautiful, like diamonds in the sky”, cantava.
Os pingos caíam em forma de coração, a plateia de telemóvel em punho e sorriso na cara, os candeeiros outra vez para cima e para baixo, o robô ao meu lado a fazer-me olhinhos.
Movimento. Cor. Música. Emoção.
Estava a ser giro, a família toda contente. A mulher: “Adoro tudo”. O filho do meio: “Isto fazia falta em Lisboa”. A mais velha: “Pai, não te vais armar em snob na crítica. O restaurante é divertido”. A criança, dando uma festinha no robô: “É o melhor de sempre”.
Eu também estava a gostar, verdadeiramente. O Estação Menina Bonita era um óvni, um espaço de lazer inclassificável. A estética e a construção lembravam posh chinês misturado com novo-riquismo das Américas.
O problema veio no fim. A conta revelou-se ridícula de cara. Por menos de 40 euros não se sai saciado. Para parque de diversões está carote.
O meu conselho é, portanto, o seguinte. Vão lá, uma vez, e comam pouco. Mas vão.
Se não for pela comida, que seja pela sanita.