Não há uma vez que passe aquela porta sem que haja um pequeno desentendimento. Os empregados, vestidos com um rigoroso uniforme nepalês, querem sempre instalar-me num sítio onde eu não quero ser instalado — mesmo se vou ao meio-dia e a sala está vazia. Não é embirração, é só um protocolo sobre ocupação de lugares seguido sem concessões há mais de uma década.
São muito coerentes nisto e no resto. Há poucos restaurantes com comida tão sólida e consistente, em Lisboa. Dezenas de visitas e a cozinha é sempre entre o satisfaz mais e o muito bom.
Note-se que estamos perante uma vulgar versão anglo-saxónica de um restaurante indiano-nepalês, como são a maioria dos restaurantes indiano-nepaleses de Lisboa. O que é que isto significa? Significa que os pratos são um apanhado de best sellers adulterados e redutores, feitos à medida de um povo com a púbis cor de laranja. Significa natas a mais em pratos que não levam natas. Significa lassis demasiado doces. Significa doses de picante para recém-nascidos. Significa menus em inglês e moradores do Pote d’Água a pedirem pratos na língua de Isabel II (“Era um prawn xacuti”, um “lamb nepal”, um “chicken mushroom”, um “garlic nan”).
Ajuda, neste Everest, tratar-se de um bom restaurante anglo-indiano-nepalês. Apesar do menu, é um sítio que nos perfuma de cardomo e cominhos, que nos traz ervas frescas e picante — um maravilhoso detox da cozinha amaionesada de chef que invadiu a cidade, e do grelhado e do cozido da tasca. Uma refeição perfeita começa com os paparis de lentilhas, crocantes e secos, mais a chamuça. A versão da chamuça do Everest é comum em nepaleses, feita com carne picada de frango, pouca cebola e coentros. Não há grande refugado, os sabores são suaves, o recheio seco. Parece desinteressante mas é um estilo: a samosa do Everest é para ir sendo ensopada com o trio de molhos: malagueta verde (favorito), iogurte e menta, molho agridoce. Cada dentada é diferente, só não muda o estilhaço da massa a ser mastigada.
Ao mesmo tempo já chega à mesa o pão de alho, in english, garlic nan. Novamente, não é assim o pão das verdadeiras casas do subcontinente indiano que encontra na Rua do Benformoso, no Martim Moniz, mas este é muito bom também, com alhos picados à mão e coentros. Antes dos principais, aconselha-se ainda os baji de cebola, a sopa de lentilhas (“dal soup”), ou o queijo fresco frito — tudo de produção caseira.
Nos principais, tenho uma predilecção pelos camarões Everest (“prawn Everest”, uma misturada boa com queijo fresco, frutos secos e couve flor envolvida em molhanga espessa de caju — que julgo ser uma invenção do chef residente). Outros favoritos incluem o tal “prawn Xacuti” (não tem a intensidade do xacuti que comemos num goês, mas vem com coco ralado, o camarão rijo e suculento, perfeito, e um bouquet fragrante de especiarias); o “lamb Nepal”, bifinhos de borrego marinados, depois grelhados e envolvidos em pimento verde; ou — imagine-se — o frango tikka masala, ícone dos ícones do indiano anglófono, uma coisa com mais possibilidades de ter sido inventada em Glasgow do que no Punjab, o chop suey da República da Índia.
Uma nota especial sobre ele. Eu julgava que os peitos de frango eram só aquela coisa que despachávamos para a sobrinha de três anos. Mas o Everest transforma uma peça seca e farinhenta em cubinhos suculentos e saborosos, ligeiramente elásticos e tudo. O truque é o de sempre, mas aqui adivinha-se outro empenho, mais horas da carne a marinar no iogurte, depois a grelha branda à moda do tandoor, por fim um creme lácteo e cor de laranja, natas e tomate, especiarias e coentros. God save the Queen, god save tikka masala.
Claro que isto é tudo servido com um arroz perfeito, muito comprido e salpicado de cardomo a sério.
No fim, passo as sobremesas porque sei que me vão dar um shot de licor de manga. Sempre.
O Everest Montanha atingiu o estatuto de clássico. E andamos tão necessitados disto.
PS: Não falei na decoração. Tem o típico folclore das casas da especialidade, no entanto sóbrio. Nas paredes, ressaltam duas coisas: o enorme quadro em fundo dos Himalaias; e ampliações – muitas – de páginas da Time Out a recomendar o restaurante. É abrir espaço para mais esta.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.