Apesar de ter fechado portas no final de 2017, o restaurante Antiga Casa Faz Frio, no Príncipe Real, não entrou para a necrologia das lojas históricas: mudou de mãos e reabriu de cara lavada mas com a história intacta. O receituário português continua a ser o grande foco desta casa, agora com uma actualização dos pratos e um maior investimento em ingredientes e matéria-prima de qualidade. A casa era conhecida por ter sempre uma proposta de bacalhau nos pratos do dia e isso vai continuar a ser regra. À terça há açorda de bacalhau (11,50€), à quarta feijoada de sames (12€), à quinta bacalhau à Narcisa (13€), à sexta bacalhau à Assis (12€).
Crítica
O bacalhau à Zé do Pipo está em risco de extinção e é uma pena. Não se pode dizer que seja um prato fundador da culinária portuguesa, mas foi uma das gulodices mais populares dos anos 1980, pelo menos dos meus anos 1980. Lembro que nos anos 1980 nem tudo era espectacular. Estávamos na era do esparguete com frango guisado e dos sumos Tang.
Devemos, por isso, agradecer a José Valentim, restaurador do Porto conhecido como Zé do Pipo. Não sabemos que delírio o levou a juntar puré com maionese, bacalhau e cebolada, o facto é que a receita rapidamente se tornou um sucesso, depois de ter sido inventada, nos anos 1960.
Entretanto, o bacalhau encareceu e as pessoas ficaram mais preguiçosas. O bacalhau à Zé do Pipo pede preparações separadas, tempo e louça. É preciso fritar (palavra, entretanto, proibida) um lombo de bacalhau, é preciso cozer batatas e desfazê-las em puré e, para a receita perfeita, é preciso fazer uma maionese de verdade. A cebolada não deve ser muito puxada, mas também deve ser feita à parte, antes de montada sobre o gadídeo.
O meu último Zé do Pipo mesmo bom, comi-o há uns anos na Casa do Bacalhau, em Lisboa. Depois disso, procurei-o por tascas e fine dinings e praticamente só o encontrei aqui, no Faz Frio. Viu-o na ementa há uns três anos, já com Mateus Freire à frente da cozinha, e voltei a vê-lo agora. Uma felicidade.
Mateus Freire marcou a nova era do histórico restaurante do Príncipe Real, casa popular que se actualizou com tino, já em 2018. Nessa altura, a carta introduziu petiscos tradicionais de chef, do caldo verde aos peixinhos da horta, e um prato de bacalhau diferente por cada dia da semana. Passou tudo a ter um pouco menos de gordura e um pouco mais de finesse, sem que no entanto se arredassem clássicos lisboetas de sempre, como o bitoque ou o pernil.
Ora, essa filosofia prevaleceu, mesmo com a saída de Mateus Freire para o Osso Bento, em 2021, como comprovei recentemente.
Num almoço a meio da semana, o ambiente misturava expats do Príncipe Real e turistas a perguntar “what’s a pernil?”. Na esplanada, quase só corpos alvos semi-desnudos ao sol de Março. Lá dentro, tudo igual, o bar à esquerda em pedra lioz, como nas tabernas antigas, e as paredes forradas a azulejos e quadros. Eu e o meu amigo seguimos para um dos alvéolos interiores, pequenas salas separadas por biombos.
Tenho sentimentos dúbios sobre compartimentos dentro de salas, sobretudo se tiverem várias mesas. Aqui servem para dar um pouco mais de sossego e recato. Mas se tivermos o azar de nos calhar um grupo arruaceiro, como foi o caso, o ruído é maior ainda.
Felizmente a comida estava boa. Eis as pataniscas, eis o caldo verde, eis o arroz de forno (bago agulha) de enchidos e o piano assado com mostarda e mel. Tudo bem, saboroso, servido em tachinhos e frigideirinhas bonitas. De entre os pratos que não saem da carta, está ainda a mousse, espumosa, que, embora gostosa, me deixou menos feliz do que o arroz doce frito.
Nada disto ofuscou todavia a estrela da carta. O meu amigo não estava preparado. Assim que levou a primeira garfada à boca, começou a gemer. “Hummm, hummm, Zé do Pipo é mesmo bom”. Ó, se é. Puré manteigoso, o lombo do bacalhau ao centro (demasiado fresco para mim, bom para o meu amigo), limpíssimo de espinhas e pele, cebolada por cima, pickles em redor e no topo a maionese gratinada. Bem, haja senhor José Valentim!
Qual é a questão com este Faz Frio? O preço. Estávamos ainda a festejar a vida e a comida, quando apareceu a conta. Duas entradas, dois principais e duas sobremesas ficaram por 36 euros por pessoa, ao almoço. Sem vinho, só quatro flutes de imperial. O meu amigo lembrou a pandemia e a seca e a guerra. Eu acrescentei a geografia: “Estamos no Príncipe Real.”
Em todo o caso, o Zé do Pipo, com um lombo curto, levou-nos 21€. Pareceu muito e eu recordei uma curiosidade histórica. A receita de José Valentim foi criada no âmbito de um concurso organizado pelo Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular, do Estado Novo. O nome do evento? “A melhor refeição ao melhor preço.”
*Os críticos da Time Out visitam os espaços de forma anónima e pagam pelas refeições