Quando provei os raviolis de porco preto fiquei convencido. Portugal já não fazia uma aliança com Itália tão estupenda desde os tempos em que Rui Costa jogava na Fiorentina.
Eis a melhor pasta fresca que se pode comer, dois envelopes gordos a nadar em molho de tomate, a massa naquele al dente em que se morde e mastiga; no interior, pedaços de bochechas porcinas, como só as desses porcos que se passeiam no montado, aqui humedecidos por queijo ricota, que é o soro de leite mais doce e guloso que se faz no mundo.
Demorei demasiado tempo a ir ao Fiammetta, o italiano de Campo de Ourique que é tão bom que pode sobreviver só com os fãs do bairro. O restaurante não precisa de publicidade, nem precisa de gritar para os turistas, porque está sempre cheio de uma mistura sofisticada de residentes locais estrangeiros e campodouriquenses, pessoas que guardam para si o segredo como quem encontra notas de 500€ numa rua deserta.
A vibração do restaurante, ali perto do Jardim da Parada, é a da um bistrô italiano. Por estes dias, as janelas abrem-se para a calçada e lá dentro vêem-se alforrecas em arame pendendo do tecto e, em fundo, na cozinha semi-aberta, cozinheiros italianos picam a carne do tártaro à faca e montam no prato os espargos da época, como se fosse uma escultura.
Esses espargos, haveriam de chegar à mesa, segundos depois, simultaneamente tenros e firmes, lascados ao meio, só com um toque de limão e pimenta preta, no mais científico dos pontos de cozedura alguma vez experimentados em espargos, numa construção artística sobre ricotta e limão — sempre a ricotta.
Foi a abertura para um almoço encantador, com o sol a aquecer-nos os pés, na companhia de um pinot grigio arrefecido em frappé, uma das muitas garrafas italianas da carta, riquíssima e enunciada por regiões, com informação de castas e produtores.
Haveria depois de chegar o secondo piatti, clássico de sempre, o escalope de vitela alla milanese, bolacha de carnucha panada do tamanho de uma mão, prensada e crocante, acolitada por rúcula picante e amarga, como deve ser a rúcula.
Noutra visita, desta feita ao jantar, experimentei as bruschettas de lardo di Colonnata, denominação da região de origem (Toscânia), um pedaço de gordura retirado das costas do porco, que só pecou por ser pouco.
Em quantidade foi, por sua vez, o tártaro. São muitas as teorias sobre a origem do tártaro, a primeira das quais decorre do povo tártaro, de origem turcomana, que se estabeleceu sobretudo na Rússia. O tártaro culinário, todavia, começou por ser um molho, que Escoffier sofisticou, e só depois se tornou num pedaço de carne ou peixe cru picado à faca.
Em qualquer caso, também há uma versão alla Veneziana, que o Fiammetta põe no prato com a carne em cubinhos, misturados com cebola roxa e alcaparras, enformados no tradicional aro de cozinha, com a gema de ovo por cima da carne e, em redor, um molho de iogurte e alho. Italiano ou não, é um belíssimo tártaro.
Para encerrar qualquer veleidade de dúvida sobre a autenticidade da cozinha italiana do Fiammetta, temos as sobremesas. O tiramisù é servido no copo e não à fatia, como eu prefiro, mas ainda assim tinha lá a identidade, feito com uma mistura de mascarpone leve. E também tive a sorte de apanhar, como especial da casa, os célebres cannoli sicilianos, canudos de massa frita recheados de ricotta, com chocolate e pistáchios.
O serviço foi sempre muito simpático e atento, num dos casos com pronúncia italiana e tudo.
Em síntese. O Fiammetta é um desses raros casos de restaurante italiano a sério. Aqui, não se pisca o olho ao turista ocasional que foge da cozinha portuguesa e de tudo o que não tenha esparguete, nem se pretende captar os milionários que acham que Milão é a capital do mundo. O Fiammetta quer dar a comer bons produtos italianos, de forma simples, servidos a preceito. E isso é muito.
PS: Quem quiser só comprar magnífica charcutaria italiana, queijos e outros produtos, também pode, que se vende para fora.