A experiência começa no estacionamento. Estamos a chegar ao Myriad by Sana, o hotel cinco estrelas da torre do Parque das Nações, e o porteiro aproxima-se do carro. Sugere que lhe entregue a chave para que ele prossiga a manobra. Imagino uma garagem subterrânea com ganchos apertados e confio-lhe o bólide. Saio, ele entra. Para nossa surpresa, arruma cinco metros à frente: mete primeira, vai a direito e já está. Há uns anos vi uma coisa assim à porta do Ritz, com António Lobo Xavier ao volante. Lobo Xavier ia num Aston Martin e saiu com a pressa dos homens atrasados para almoços de negócios. Teve grande efeito.
Eu não ia num Aston Martin. Nem com pressa.
Na recepção, átrio com candelabros brilhantes pendendo do alto, mulheres de peitos comprados, homens de sapatilhas de 500 euros, arquitectura fria e espectacular – podíamos estar no Dubai.
O ambiente merece análise demorada, mas o elevador para subir ao Fifty Seconds é logo ali e somos chamados por uma empregada, qual hospedeira de terra. Antes de entrarmos, dá-nos as boas-vindas e conclui o check in com votos de “uma boa experiência”.
Agarro no cronómetro, a nave panorâmica parte. É uma nave lenta, afinal. Quando as portas se abrem, confirma-se a razão do nome do restaurante. Cinquenta segundos até ao topo. Certos. Depois, temos uma desilusão. É de noite, a paisagem perde-se. Luzinhas sumidas da Ponte Vasco da Gama, os vidros cheios de reflexos, a vista um quadro escuro e imóvel. “Ao almoço é que é.”
Siga. Decoração limpa, confortável, sofisticada, mesas espaçadas em volta da cabine envidraçada. A WC merece visita, eis o urinol mais abismal de Lisboa. Na sala, três empregados aguardam-nos. Um dirige-nos para a mesa, os outros sentam-nos numa coreografia silenciosa.
Sentar os clientes é uma tarefa habitual em restaurantes de fine dining mas poucos a sabem fazer. É um exercício difícil, requer destreza e treino. É preciso puxar a cadeira no preciso momento em que o cliente se aproxima; e depois é preciso avançar com a cadeira no preciso instante em que ele se agacha. Um segundo atrasado e o cliente pode ficar na beirinha. Ficar na beirinha é uma chatice.
Aqui corre tudo de forma perfeita. Boa sincronia, ainda para mais sendo os cadeirões pesados, e baixos como poltronas. Tratado o acomodamento, aparece Inácio Loureiro, ex-sommelier da Fortaleza do Guincho, agora com funções de chefe de sala. Pergunta-nos se queremos um aperitivo e some-se. Substitui-o outro empregado, igualmente sénior. Não insiste em explicar a carta, percebe que trazemos a lição estudada.
Há duas hipóteses de degustações, mas também há comida à carta. Esta última modalidade vai rareando na chamada alta cozinha e é de saudar, ou antes, seria de saudar: os preços dos pratos avulsos são ridículos de caros. Entradas a começar nos 42 euros para uns “legumes biológicos” e a acabar nos 55 euros do lagostim; pratos entre os 65 euros da pescada grelhada e os 85 euros do arroz de lavagante; sobremesas todas a 20 euros. Quanto aos menus de degustação, o Fifty Seconds custa 140 euros; e o Degustação, 170. Seguindo a regra habitual, as pessoas da mesa têm de escolher o mesmo, para que “sejam servidos em simultâneo”. Esta é a regra habitual, mas a prática habitual diz-nos que se pedirmos com jeitinho ao empregado ele vai perguntar à cozinha e daí a uns minutos a cozinha vai dizer que sim: “O chef abriu uma excepção.”
Nisto, aparece o homem dos vinhos, o escanção. Deixa-nos um livro sobre a mesa. É um livro bonito, pequeno e grosso como um romance. Tenho visto cartas de vinho de vários formatos, do infeliz tablet à encadernação em pele. Este é o melhor de sempre. Um livro que folheamos tranquilamente, com fita-marcador e tudo, “a partir daqui são os tintos”. Um livro que lemos como um mapa vitivinícola, as grandes referências francesas, espanholas e portuguesas.
Às tantas, a minha mulher dá sinal de exasperação: “Como é que estão os Lusíadas?”, pergunta, interrompendo a leitura. “Inflacionados, como seria de esperar.” Muito poucas garrafas abaixo dos 50 euros, até a Água das Pedras é cara: 8 euros, pimba, dois euros a mais do que havemos de pagar pelo descafeinado.
Voltando à comida, somos claramente encaminhados para um dos menus. O Degustação, o maior, tem só mais dois pratos, mas usa produtos nobres (e bons) como o lagostim (ca bom), o caviar, o carabineiro e a ostra.
De entre os pratos mais notáveis do chef basco – e são muitos –, o outro menu só inclui praticamente o extraordinário mil-folhas caramelizado de maçã verde e enguia – entrada obrigatória nos restaurantes de Martin Berasategui. Depois de trincarmos a pecinha de Lego em três camadas, percebemos a popularidade: é um prodígio de texturas e de umami, das melhores coisas que o fine dining europeu deu ao mundo. Enguia. Foie gras. Maçã verde. A quem lembraria?
De resto, a degustação mistura a melhor técnica de escola francesa, toquezinhos de molecular e as raízes bascas do chef. Pontos perfeitos de cozedura e jus comme il faut. Formas geométricas. Géis e espumas (como a de açafrão, na icónica ostra com sumo de azeitona e pimento) e gelatinas (como a de tomate na estupenda salada de verduras). Pães feitos na casa, claro, todos bons, com destaque para um brioche untado de gordura de porco, delicioso. Manteigas várias apresentadas como pequenos cigarros coloridos. Azeite duriense da Boa-Vista. Mais peixes e mariscos do que carnes (só uma por menu). Carnes cozinhadas a baixa temperatura até ficarem tenras e sem identidade, o costume.
É verdade que algumas destas coisas já vimos noutros sítios, e por menos dinheiro, mas Berasategui detém a patente. Ele é um dos pais da restauração moderna de estilo Michelin, um dos seus arquétipos mais perfeitos: rigoroso, técnico, sofisticado, luxuoso. Comer a sua comida é comer a história do fine dining dos últimos 20 anos e a prova são as dez estrelas Michelin que tem na lapela. Entre os vivos, só Alain Ducasse e Gordon Ramsay se podem gabar do feito.
No próximo dia 20 de Novembro, quando forem conhecidos os premiados deste ano do guia vermelho, é provável que a contenda vire a favor do espanhol, com este Fifty Seconds a dar-lhe mais uma estrela.
Nessa altura, será justo que Filipe Carvalho, chef executivo, também suba ao palco. Não é fácil comandar um barco com o capitão em terra, do outro lado da Ibéria. E ele tem-no levado a bom porto.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.