O meu sogro é um dos maiores especialistas mundiais em buffets, rodízios e borlas. Parceiro frequente de jantares, não se tem emocionado com a nova cozinha bistrô, “pratinhos e mais pratinhos de beringela”. Do que ele gosta é de muita substância – “com qualidade”, acrescenta sempre, “com qualidade”. Bom, barato e muito. Com qualidade, com qualidade.
Quando recebeu o convite para ir ao Fogão Gaúcho, ficou excitado como uma criança na bilheteira do Slide & Splash. Em poucos minutos, pôs-se em minha casa, em poucos minutos estávamos à frente do glorioso buffet do Fogão Gaúcho, em Carnaxide. A marca tem mais dois estabelecimentos, um em Alverca, o outro no Carregado, estando por isso vocacionada para dormitórios e parques empresariais.
Embora fosse terça-feira, havia uma trintena de pessoas no restaurante, pessoas famintas. Em redor das mesas em forma de U, os clientes alternavam de estação com grande rapidez, saltando da mandioca frita para a salada russa, do queijo fresco com tomate para os enchidos, da panela de carne assada para a panela de salsichas, dominados pela esquizofrenia alimentar típica dos clientes de buffet. Nunca tiravam o foco das travessas, os olhos baixos, como veraneantes a mariscar nas rochas, à procura do maior mexilhão da praia. O sogro explicaria este sentido de urgência na lição 1 do Manual para Comer no Rodízio. “Às vezes, em alguns buffets, eles não repõem as travessas, pelo menos as melhores”.
Não era o caso. O sogro percebeu isto logo e deixou as lebres distanciarem-se. A prova ainda ia no início e um buffet é uma maratona. Quem dá tudo no arranque não chega à meta. De prato na mão, sondou a oferta com uma frieza altiva e racional. Era preciso cotejar o índice de valor da comida com o índice de volume que ocupava no estômago. E ter ainda em conta que faltava o rodízio. Lição 2: “Nos rodízios, eles querem é que te enchas rápido com as entradas, para quando trouxerem as carnes premium já não teres apetite”, disse o sogro.
Não tocou no pão com alho, e fez bem (baguetes dessas congeladas); não tocou nas coxinhas, e fez mal (estavam bem fritas, secas, saborosas); não tocou nos gomos de batatas fritas das congeladas, e fez bem (esfriadas). Por dever profissional, eu fiz um prato com amostras de tudo um pouco. Da salada de polvo (ok), às moelas (ok), passando pela salada russa (ok), até ao chouriço assado (salgado), à morcela (ok), à farofa (mazinha, cozida, fria), à banana frita (ok), às batatas cozidas com azeite e ervas (ok), à couve (salgada) e ao feijão preto (ok).
Tive de reabastecer várias vezes, por causa de outro truque de rodízio, para o qual o meu sogro me chamou a atenção. Lição 3: “Nem sempre é o teu prato que está cheio. Pode ser só o prato que é mais pequeno do que o habitual.” De qualquer das formas, cabia ali muita carne e era a carne que iria definir o desfecho da noite. Aí é que íamos ver da arte. O meu sogro arregaçou as mangas. Não é fácil encontrarmos bom churrasco. Há umas semanas, quando perguntei a um colega brasileiro qual o melhor sítio da especialidade em Lisboa, ele respondeu com imodéstia: “A minha casa”. A maioria dos rodízios da cidade são matadouros de má carne como aquela que começa em Chi e acaba em Ão e não é chicoração.
No Fogão Gaúcho, a primeira carne a aparecer foi picanha. O empregado deu à escolha: da parte cortada ou da parte intacta, assada. Venham das duas, para tira-teimas. Muito melhor a parte assada, naturalmente. Mas não excelente. Estava seca e meio fria. Também secos os corações de frango. Guloso o baby beef com queijo derretido enrolado em bacon, mas tudo o que é enrolado em bacon assado sabe bem. Bom o cachaço de javali, a demonstrar que todos os cachaços, de todos os seres vivos, são fabulosos. Pouco depois apareceu outra vez picanha, esta fora do espeto, num prato também com rib eye. Pedi para não servir tudo, queria uma pausa entre ambos. Mas não era essa a ideia do empregado. O empregado adoptou uma postura corporal em sentido contrário, permanecendo paralisado, a olhar para mim com espanto, como se eu lhe tivesse pedido para ir buscar um copo de água com gelo e limão a Cascais. Esse suspense tenso fez com que repensasse – “ok, sirva tudo” – e no final fiquei na dúvida se não teria sido comido por mais uma técnica de rodízio para papalvos. Ambas as carnes estavam bem grelhadas, mal passadas, com gordura dourada na borda.
Nessa altura, o sogro lançou o alerta. “Calma.” Estavam a encher-nos. A enjoar-nos com shots de proteína animal, tratamento de choque para brutos. E ainda faltavam as três carnes mais interessantes: maminha, cupim e costela gaúcha. A pedido, veio de imediato a maminha, com serviço especial. “Querem uma maminha dos Açores?”. Queremos. Acabou por ser o melhor do jantar. Era de vitelão, fina, suculenta, bem temperada de alho. Pior o cupim, que costuma ser a minha peça favorita. O cupim é tirado daquela espécie de bossa dos bovinos de raça zebuína (ou cruzados com) e é sempre muito infiltrado de gordura. Este estava já esgotado de tantas vezes ir ao assador. Por fim, a costela gaúcha, a bomba atómica do rodízio, um condensado de sabor e gordura amarelada que nos atirou ao tapete.
No final, estávamos os dois como se carregássemos um pedregulho na barriga e estávamos felizes. O objectivo tinha sido cumprido.
Em síntese. O Fogão Gaúcho foi anunciado pela sua agência de comunicação como “o verdadeiro rodízio para pôr fim aos preconceitos”. Nem tanto: não é o verdadeiro, nem põe fim aos preconceitos. Mas também nunca poderia ser de outra forma. Pelo preço que se cobra, cerca de 25 euros com uma garrafa de bom vinho a meias, vale a pena ir lá encher o bandulho. Palavra de sogro.
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