E de repente apareceu um xarém de berbigão cheio de areia. Não com uma areiazita. Cheio de areia. O areal do Guincho dentro das papas de milho.
Ficámos em silêncio, só uns monossílabos. “Pena”. Mais uma garfada. “Acontece”.
Até ao xarém de areia, este Fome estava a ser interessante. Começou, aliás, muito bem. Meia hora antes era assim: eis-nos sentados na esplanada, gente de todas as proveniências a passar, Arroios a voltar a casa, um ou outro crackhead apressado na colecta, a Lisboa multicultural e sem turistas. Calor de fim de dia, no copo um branco Thyro, a servir um empregado simpático e motivado – “isto é tão bom que quando estou de folga venho aqui comer” –, no quadro manuscrito os pratos do dia só com comidas promissoras, uma dúzia delas.
Vieram logo azeitonas bem temperadas, bom pão, queijo fresco da Queijaria das Romãs para ser barrado com pimenta da terra dos Açores (dueto clássico e vencedor); e uma tijela de salada de tomate mimosa, extraordinária: os frutos vermelhos e amarelos, saborosíssimos, imersos num sumo de lima e limão com ervas aromáticas (salsa, orégãos), dava a ideia de já ter em algum tempo ali juntos, os sucos fundidos, acidez, doçura, grande prato. (Lima com limão é uma das descobertas deste Verão, um complementa o outro e faz nascer outra coisa, a doçura tropical da lima espevitada pelo acidez crocante do limão. É experimentarem em casa.)
Estávamos bem neste pica daqui, pica dali, e ficámos ainda melhor com as ostras do Sado, frescas e carnudas. Por 1,60€ são um dos melhores negócios da cidade, vale a pena lá ir só para as comer. A seguir vieram os pratos para partilhar, doses à moda da bistronomie, bem servidas. Mantivemos a toada fresca e optámos por um ceviche de corvina, um dos pratos mais populares da casa. Ceviche enjoa só de pronunciar; já sabemos que se tornou num cliché onde cabe qualquer porcaria com peixe e umas gotas de lima; mas este estava excelente, equilibrado, o peixe fresco, bem acompanhado de puré de batata roxa e bolachas caseiras de arroz e tinta de choco.
Aplausos e mais aplausos para um improvisado camarão com creme manteigoso de agriões e alho francês frito (“vão comê-lo pela primeira vez”, anunciou o empregado); e ainda para o carpaccio de porco preto e rúcula, muito bem temperado, invenção ousada e picante e saborosa.
E depois o xarém. O malvado do xarém. Cheio de areia. “Nunca ninguém se queixou”, disse o empregado, que foi depois comunicar a falha à cozinha. Atrás dos fogões estavam os dois jovens cozinheiros e sócios, Adriano Jordão e Fábio Abreu. Quando voltou, o empregado não tinha nada para explicar. E minutos depois os cozinheiros vieram à rua para uma pausa, pararam para uma conversa com um deputado do Bloco de Esquerda, e por nós passaram sem nada para dizer sobre a areia. No final, o xarém incomestível apareceu todinho na conta.
Não foi bonito. A falha, em teoria, não é particularmente grave. Hoje em dia, os bivalves são depurados antes de irem para o consumidor e instalou-se esta ideia de que não precisam, sequer, de ser passados por água. Não é verdade, na maioria das vezes e, à cautela, devemos dar-lhes uma banhoca. Mas o que encanzinou mais foi a forma displicente como os cozinheiros/ proprietários lidaram com o assunto.
Além deste caso, houve ainda outros sinais de arrogância culinária, ora na versão somos-muita-modernos, ora em modo na-escola-de-hotelaria-era-assim. O maior exemplo de modismo exacerbado foi o abuso de plantas halófitas, essas que crescem junto ao mar, como a salicórnia e o funcho marinho. Não é caso único, outros restaurantes de Lisboa andam armados em dunas. Aqui, vinham nas ostras, no xarém e no ceviche, e vinham muitas. Este pseudo vanguardismo não colou depois com o uso do aro de cozinha para formatar o ceviche, empratamento barroco e deslocado do que parece ser a filosofia informal do restaurante. Dito isto, o Fome tem o encanto da liberdade e da paixão pela cozinha, própria de quem gosta do que faz. Com um ano de vida, nota-se o entusiasmo pela descoberta, pelo produto fresco e de qualidade acima da média. Prova disto é o prato de queijos da Granja dos Moinhos, com os óptimos cabra e cabrembert de Adolfo Henriques, ao preço justíssimo de 7,5€. O cuidado em fazer boa comida sobrepõe-se ao desmazelo do espaço, sem encanto, e da louça, onde há desde pratos lascados a ardósias ultrabatidas.
Em síntese. O Fome é um desses sítios onde podemos ser surpreendidos com combinações e produtos raros, a um preço razoável. Adriano e Fábio são já de uma geração de cozinheiros qualificados que tem orgulho na cozinha portuguesa e a quer elevar, respeitando a sua essência. Oxalá prossigam o caminho sem esquecerem que, no final, o seu ego criativo deve conviver com a experiência do cliente, e que ainda há muito para melhorar.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.