Nesta sala de aula aprende-se a falar português de faca e garfo. Todos juntos:“Já fui ao Brasil/ Praia e Bissau/ Angola Moçambique/ Goa e Macau/Ai, fui até Timor...” Inevitável entoar a eterna “O Conquistador” no novo Geographia, mas aqui não foram os Da Vinci a conquistar. Rúben Obadia, Miguel Júdice e Lucyna Szymanska não cantam, mas fizeram um grande trabalho de investigação sobre a cozinha de língua portuguesa para abrir este restaurante em frente ao Museu Nacional de Arte Antiga.
Por Inês Garcia
Crítica
Um amigo a quem contei a história deste restaurante ironizou: “Se o PAN sabe...” O desabafo não tem nada a ver com a carne ou o peixe do menu, mas com um quadro na parede. É que a inspiração dos proprietários – segundo os proprietários – foi um enorme rinoceronte, cuja imagem está exposta logo na sala principal. “Simboliza o cruzamento de culturas de expressão portuguesa que inspira o Geographia”, lê-se no site. Não estamos a falar de um rinoceronte qualquer, mas do malfadado rinoceronte Ulisses, desenhado para a posteridade por Albrecht Dürer, em 1515, um bicho que acabou por se afogar ao largo de Itália, às mãos dos portugueses.
O episódio, inserido na narrativa dos Descobrimentos, é longo, mas podemos resumi-lo assim. Afonso de Albuquerque, governador das Índias portuguesas, queria construir uma fortaleza em Diu. Afonso tentou por isso comprar o sultão local com oferendas, mas o governante não se comoveu. A única coisa que deu aos portugueses foi um rinoceronte. Vivo. Afonso recambiou-o de imediato para a metrópole, sujeitando-o ao confinamento numa nau, durante meses. À chegada, o bicho espantou o rei D. Manuel, conhecido por ter outros animais exóticos em cativeiro. E espantou a Europa – desde o século III que não se via nada assim por estas bandas –, pondo cientistas e artistas, como Dürer, interessados no animal.
D. Manuel ainda organizou um combate entre o temível unicórnio e um elefante, mas depois fê-lo seguir para o Papa, em Roma, decisão que acabaria com o naufrágio ao largo de Itália e a morte do animal antes de pisar terra. Como é que isto inspira um restaurante que quer ser “o cruzamento de culturas de expressão portuguesa”? A minha convicção é que se trata de treta, esta imbecilidade contemporânea de fabricar histórias para jornalista engolir e regurgitar; o resultado da obsessão de empreendedores e restauradores com o conceito, sempre o conceito; a primazia da comunicação, da imagem e do marketing sobre o resto – mesmo que isso implique sevícias a animais; mesmo que a comida seja só assim-assim.
Quando lá fui, mais um amigo, o impacto inicial até foi auspicioso. A primeira coisa que percebemos é que há estilo: é tudo bonito, dos talheres Herdmar aos individuais em pele, dos bancos tipo Chesterfield a globos e mapas, decoração a lembrar um salão colonial actualizado. A segunda coisa que percebemos é que a ideia da carta é ter boa parte das cozinhas de territórios de língua portuguesa na mesma mesa, do Brasil a Goa, passando por Angola, Timor, Macau ou Moçambique. A terceira evidência foi também a menos entusiasmante: a comida é mais ou menos, mas os preços são especiais.
Comecemos pelas coisas positivas. A sopa de tomate estava excelente. Fazia parte do menu do dia (entrada, prato e café: 14€) e, mesmo não sendo já época do tomate, soube muito bem, com um pedaço de pão frito e um ovo escalfado. Também estava excelente o pão-de-ló, que no entanto é repetido de outros estabelecimentos da cidade de que Miguel Júdice é sócio, como o Nós é Mais Bolos, no Time Out Market, e no entanto não é melhor do que outros pães-de-ló, como alguns de Alfeizerão.
Coisas negativas. As saladinhas tradicionais portuguesas vieram servidas em latinhas de conserva, coisa a que já nem os turistas acharão graça. Uma das latinhas era de grão com bacalhau, outra de polvo, e não havia nada de errado com o tempero (cebola roxa, salsa, vinagre e azeite). Só havia de errado que a primeira tivesse apenas dois pedacinhos esfarelados de bacalhau sobre cozido e a segunda usasse meia dúzia de lâminas de polvo, ambas para o morninho, vá-se lá saber porquê – e por isto tivéssemos de pagar oito euros.
Na categoria assim-assim estava tudo o resto. Da carta veio uma “galinha do campo ao caril de amendoim” (14€), com origem em Moçambique. Razoável o molho de caril, com amendoim abundante, mas a dita galinha fora pré-cozida à parte e aquecida com o molho, apresentando-se seca e insípida. Quanto ao prato principal do menu do dia, era uma feijoada à brasileira. Não sendo incrível de comer, esteve na origem de mais um grande momento da série Empregados de Mesa de Lisboa Fazem Stand Up. O sketch aconteceu assim. Quando as tigelas com carne e feijão preto chegaram à mesa, perguntei ao rapaz que nos estava a servir: “A carne é seca?” O rapaz, brasileiro, respondeu: “Não, a carne é mais ou menos”. Por segundos, fiquei confuso, a digerir a mensagem. Mas depois percebi que ele achava que eu estava a insinuar que a carne estava seca – e que não, explicou, não estava nem seca nem molhada, estava “mais ou menos”. Pela alma deste rapaz, brasileiro, não passou pela cabeça que eu estaria a perguntar se a feijoada, brasileira, levava carne-seca – salgada e desidratada – como é tradicional no Brasil.
Antes de escolhermos os pratos, o mesmo empregado já tinha tido um acto de algum dramatismo. Nessa altura, eu quis saber qual era a nacionalidade do cozinheiro de serviço. Estava dividido sobre a origem do prato que haveria de escolher e isso poderia ditar a minha preferência. O rapaz ficou perturbado e hesitante, sem dizer palavra, claramente constrangido. “Quer mesmo saber?”, atirou. “Quero”. “O cozinheiro é cabo-verdiano”. Procurei de imediato um prato de Cabo Verde no menu, mas malogradamente não havia.
O leitor dirá que não é relevante o cozinheiro ser da nacionalidade da cozinha que pratica, e não sem alguma razão: conheço bons sushiman que não são japoneses, por exemplo. Mas também é verdade o seguinte: conheço muitos mais que o são ou que viveram lá ou que estudaram e aprenderam lá. Ora, os recursos humanos que se conhecem deste Geographia, têm muito pouco a ver com lusofonia para além de Portugal. Do que noticiou a imprensa, estamos a falar de Lucyna Szymanska, uma empresária da moda polaca, de Ruben Obadia, dono de uma agência de comunicação, com ligações familiares e religiosas a Israel, e de Miguel Júdice, empresário na área da restauração, de nacionalidade portuguesa.
E isso pode importar, sim. O restaurante transparece uma falta de convicção na gastronomia que serve. Este Geographia tem uma ideia, uma história, maior do que aquilo que pode e sabe cozinhar e servir. Este Geographia tem um rinoceronte na sala.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.