Talvez seja abusivo fazer uma afirmação tão taxativa, mas estou convencida de que a maioria dos portugueses tem uma relação sobretudo iconoclasta com o bolo-rei. Fetichizamos a sua presença na mesa de Natal, procuramos e discutimos acesamente o melhor, metemo-nos em filas insanas para o comprar, mas é, invariavelmente, a última coisa a desaparecer da mesa mais longa do ano.
Foi numa recente ida à Gleba que, perante as suas propostas para o Natal, bolo-rei e panettone – o bolo levedado que faz as vezes do bolo-rei no natal italiano – (ambos 24,99€), decidi testar a possibilidade de mudar a minha relação com este objecto da gastronomia natalícia.
E foi! É preciso começar por dizer que a consistência é muito diferente da do bolo-rei tradicional: muito mais leve e airada, quase um brioche bêbado. As notas da fermentação lenta são muito presentes e ficam adensadas por um álcool mal camuflado (ainda bem!) e uma baunilha levinha. E tudo envolve deliciosamente os frutos secos, tão abundantes e tão inteligentemente seleccionados: as passas são frescas e suculentas; a laranja confitada aparece aqui como nunca se viu: é linda, agradável de morder, e não mais uma borracha esquisita que empurramos para a beira do prato; e o toque de génio: uns apontamentos discretos de figo seco, mas a estalar no palato, feito fava. E o que dizer da presença da amêndoa, ora laminada ora inteira, sempre a explodir na trinca.
Concluí, porém, que o panettone é um produto que vale a pena deixar contaminar a tradição nacional, pelo facto derradeiro de ser delicioso! Comprei a versão de chocolate, onde uma textura hiperleve – a fermentação é de tal forma louca que a massa ganha buracos enormes – e de sabor envolvente é ocupada pelo estalar crocante de imensas avelãs tostadíssimas e densas. E depois aquele chocolate escuro, tão profundo: parece um pijama de veludo nuns lençóis de seda. Tudo o que quero para o Natal é afogar-me nesta massa.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.