Esta ideia dos petiscos para ir partilhando já vem do anterior restaurante de João Matos em Cascais, o Cascas, que deu origem a este depois do encerramento forçado. Ora bem, viraram-se para o mar e abriram um duplex com um bar à entrada com cocktails clássicos e outros de assinatura, que se querem bem ligados à cozinha. Exemplo disso é a caipirinha de aipo. O Hífen esforçou-se para deixar de fora nomes que “como as tascas da esquina ou o não-sei-quê do bairro”, mas nada tema, que o ambiente trendy está la todo: as madeiras claras, os apontamentos azuis-claros e as plantas a cobrirem paredes. Um bar-restaurante-insta-friendly.
Crítica
Toda a gente que vai à praia do Guincho recorre à aplicação Windguru. O Windguru é muito pesquisado por surfistas e pescadores de todo o país, mas em Cascais até a avozinha o usa antes de ir ao Guincho. O Windguru diz com uma precisão absurda que às 12.34 vai soprar uma rabanada de vento e às 12.34 uma rabanada de vento atira-nos areia para as pernas como um ataque de acupunctores.
Aconteceu que neste sábado de início de Setembro, os cascalenses acordaram, consultaram o Windguru e nem queriam acreditar. A app apontava para ventos de seis quilómetros por hora, uma brisa subtil e morna. De repente, toda a gente teve a mesma ideia: vestir os miúdos, pôr a sacola ao ombro, e ir para o Guincho.
Às 10.30, o parque de estacionamento já tinha uma fila de meter inveja ao IC19. O fenómeno só não foi trágico por causa da eficiência dos funcionários, do melhor que há no país em termos de parques de estacionamento. Na máquina do ticket um rapaz belo – podia ser um De Botton ou um Mesquitela – entregava-nos o bilhete em mão com delicadeza aristocrática e rapidez proletária; e, ultrapassada a cancela, dezenas de colegas de walkie-talkie e calçãozinho como funcionários do Estoril Open conduziam os automobilistas para o lugar vago. No fim, agradeciam-nos respeitosamente e não pediam moeda...
Já no areal, grande enchente outra vez. Pagámos 1,30€ por um café e descemos à zona de chapéus de sol. No caminho, ouvimos uma local lamentar “já não haver espaço nem no meio da praia”. Se não havia espaço nem no Guincho Centro era porque o Guincho Norte devia estar ao barrote. E estava.
Sucede que o Guincho Norte ao barrote é como Carcavelos com meia casa. Uma família com cinco filhos ao nosso lado fazia menos barulho do que um casal de namorados aos melos com o seu rap de youtuber na coluna de som em Carcavelos Sul. Outra virtude dos residentes do Guincho era passarem entre a malha apertada de veraneantes sem projectarem areia: prancha de surf num braço, o Antoninho no outro, a Mariana às cavalitas, e eles como bailarinas em pontas contornando toalhas e mochilas Fjällräven.
A beleza da vida em sociedade cascalense prolongou-se ao almoço.
Achámos que 14 euros por um hambúrguer no Bar do Guincho estava carote e em boa hora rumámos ao Hífen, em Cascais, uma viagem de 12 minutos. A mesa marcada em cima da hora estava lá à nossa espera, bem como o trato respeitoso típico da região.
O juvenil sentado à nossa mesa não era de Cascais e atirou copos ao chão, bateu com talheres, entornou água – e perante tudo isto o serviço foi rápido a resolver e agradável, deixando-nos à vontade como se estivéssemos na esplanada das bifanas da Feira da Luz.
De resto, também a comida agradou. Cascais não é um oásis da restauração, sobretudo no escalão abaixo dos 30€ por pessoa sem baixela de prata. Mas este Hífen não fica atrás de muitas mesas célebres de Lisboa com comida para partilhar e deck de DJ.
O menu tem muitos títulos cliché da petiscaria para partilhar, como tataki e ovos rotos e tempuras e pica-paus. E até tem uma coisa chamada Brás de Bacalhau. Chamar Brás de bacalhau ao bacalhau à Brás é como qualificar esta crónica de “Lacerda de crítica” em vez de “crítica à Lacerda”.
Tudo isto é literatura e o que importa mais para aqui é que se comeu bem ou muito bem. Fomos pelas sugestões do empregado. Tataki de novilho frito, a carne em tiras com cogumelos portobello e lascas de parmesão – três dos ingredientes com mais umami da culinária mundial. Javardice boa.
A salada de chèvre, espinafres, nozes caramelizadas e beterraba tinha bom chèvre (queijo de cabra produzido segundo método francês) e pouca alface, que é o que devem ser as saladas.
Lapas em molho manteiga e lima, com mistura de moluscos brancos e pretos, a chegar à mesa em frigideira própria, gulosas. Muito bom o polvo à galega com batata doce, polvilhado de pimentão: tenro, a batata sem se esfarelar, no ponto.
Menos consensual a sopa com ovo Arzac, por causa da couve kale assada que fazia parecer que alguém tinha deixado pegar o tacho. E para terminar, o parfait de manteiga de amendoim com nougat de chocolate preto e caramelo salgado – o doce mais vendido da casa – tecnicamente bem feito e bonito, demasiado doce para o meu gosto, a condizer com o palato médio do tuga.
No regresso a Lisboa, passámos pela Quinta da Marinha, outro idílio de vida boa. Algumas traças são famosas por aparecerem em telejornais, não por causa da arquitectura. Outras não aparecem mas deviam aparecer. Podia-se fazer uma história da corrupção nacional e da criminalidade económico-financeira mapeando aquelas ruas tranquilas de vivendas e centros hípicos, onde convivem velhos apelidos do Antigo Regime e novos-ricos do Socialismo Democrático.
Tudo, sempre, com o máximo respeito.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.