Um português a cozinhar cozinha mexicana é tão suspeito quanto um chinês a cozinhar italiano. Sucede que Ivo Tavares, o chef português do Izcalli, está longe de ser um cozinheiro normal.
Conheço-o do tempo em que estava à frente de um balcão em Alcântara, já chamado Izcalli, lugar onde cabiam sete pessoas, apertadas – e daqui decorre, também, ser por ele identificado como alguém que escreve sobre comida.
O Izcalli de Alcântara era um lugar esconso, onde tínhamos de nos sentar de lado e comer o menu que ele escolhia para nós. Agora, continua a ser maneirinho, mas o balcão cresceu e há uma mesa redonda boa para grupos e outras para duas pessoas. E já somos nós a escolher da carta.
Também a equipa mudou ligeiramente. No primeiro Izcalli, era Ivo e a sua companheira na altura, uma “youtuber” mexicana, Paola Arango, a tratar das pessoas.
Para quem não tem presente a primeira crítica que escrevi sobre o primeiro Izcalli, Ivo Tavares viveu e trabalhou em restaurantes no México, um deles com estrela Michelin, e foi aí que construiu parte da sua autoridade.
A outra parte terá vindos dos estudos em hotelaria, dos fine dining por onde passou, dos estudos em matemática aplicada e, sobretudo, de uma compulsão inata para a perfeição e para o auto-didactismo.
Tendo conhecido alguns cozinheiros mexicanos na vida, nenhum mostrou a cultura gastronómica e a obsessão com a integridade dos ingredientes nativos como Ivo.
Ivo come, cozinha – e fala espanhol do México. Ivo não é só um cozinheiro, é um tutor da cozinha mexicana autêntica e um dos chefs mais instruídos que conheço – e não apenas em gastronomia.
A sua propensão para a excelência faz com que toque vários pianos e prefira fazê-lo a solo. Foi ele quem desenhou o novo Izcalli, de alto a baixo, dos rodapés ao tecto.
Foi ele quem fez a comunicação e é ele quem trata das compras, das finanças, da cor das paredes e da posição do ar condicionado. É ele quem serve, quem cobra e quem dá as explicações aos clientes.
Não vou dizer que faz tudo bem. Não faz. O seu restaurante parece-me ter problemas de conforto (sobretudo acústico), o espaço é menos especial do que a comida, a comunicação externa não será a mais suave e eficiente.
Mas esse é, eventualmente, o preço da liberdade, de não ter de depender de ninguém. Ivo é patrão, empregado, empreiteiro e decorador, mas está livre de dívidas milionárias ao banco e a fornecedores e pode fazer as coisas nos seus termos, com a sua personalidade, com os seus ingredientes, e pode apostar naquilo que é mais importante para si: a comida.
Falemos disso. A comida mexicana fora do México costuma usar muitos atalhos, muitas conservas de jalapeño, muita tortilha de pacote (da má, porque também há da boa, mas não se arranja facilmente e é carote).
A cozinha mexicana ultramarina esquece-se, frequentemente, de algo essencial: os chiles secos.
Cozinha mexicana sem chiles secos é como cozinha portuguesa sem refogado, perde a alma.
Ora, podemos começar por aí. No Izcalli, a salsa do taco de língua, por exemplo – para falar de um dos meus pratos preferidos –, um pedaço tenro e profundo como um lombinho de wagyu de primeira, leva uma salsa de chiles pasilla e guajillo, desses que só se arranjam num ou dois fornecedores – e nem sempre há.
Outra coisa em que o Izcalli faz a diferença é no produto e nos pontos de cocção. Às vezes, nem podemos falar em cocção. O aguachile negro de camarão, uma espécie de ceviche acidulado com tamarindo, levava uns camarãos saborosos, ao mesmo tempo tenros e gordos e firmes, tão firmes que quando os mordíamos quase estalavam.
E também o taco de cavala vinha com os lombos gordos e era desses pratos que podíamos encontrar num menu de degustação de restaurante Michelin, com metade da quantidade e o dobro do preço.
Continuando a justificar porque é que o Izcalli é um ovni, dos bons, devemos também falar de criatividade. O chicharrón, normalmente um pedaço de barriga de porco em torresmo, aqui é um corte longitudinal, fino, da orelha suína, que depois é frita em polme e servida com as bolinhas de maionese de jalapeño mais vibrantes e frescas que se podem encontrar.
Quanto às ostras (de calibre três, o mais equilibrado, porventura), surgiram gordas, imersas num banho ligeiramente ácido de aguachile de coco, com o doce a ligar com os sucos marinhos, numa irmandade boa para quem tem medo de bichos crus.
Portanto. Temos produto e temos criatividade. Falta falar de conforto, porque também o há, se quisermos. O conforto, por exemplo, de começarmos com um guacamole sem merdas, mas notável no equilíbrio de tudo e delicado na pressão do garfo sobre o abacate.
Ou ainda o conforto de uma cochinita pibil com xnipec (o molho de habanero, cebola roxa e laranja amarga), para nos encher a boca de umami e mais chiles. A cochinita pibil é esse portento de carne suína que tradicionalmente vai a assar durante umas horas, com coentros e mistura de chiles, e que depois de umas horas se desfaz para dentro de uma tortilha de milho e se engole com o prazer de uma carícia de avó.
No final, Ivo desculpou-se por ter só duas sobremesas. A verdade é que bastaria uma. O buñuelo (na origem, um sonho frito), era uma bolacha de massa caseira frita, injectada de gelado de café, cajeta (doce de leite) e banana fumada, deu-nos um final em altas – a provar a versatilidade do homem do leme.
Em síntese. O novo Izcalli devia ser mais conhecido. Julgo que uma das razões para isso ainda não ter acontecido terá a ver com a imposição, inicial, de um menu de degustação, sem alternativas. Ivo acabou com isso recentemente, e agora pode-se ter uma refeição mais em conta e mais ao nosso gosto, permitindo-nos gastar 35 euros e sair com as papilas a bater palmas – senão dos tacos, do mezcal servido no final.
Vão lá, sejam felizes.