Uma das verdades gastronómicas universais é que um restaurante cujo nome remete para uma geografia muito específica tem mais hipóteses de ser bom.
Kerala é uma região do Sudoeste da Índia. Encontrar o nome Kerala num toldo da Paiva Couceiro é algo de muito estranho e também de muito belo. Eu vejo Kerala e quero entrar. Imagino uma selva de elefantes, coqueiros, bananeiras, pimentas. Se alguém chama ao seu restaurante o nome da sua terra, ainda por cima uma terra que é um armazém gigante de especiarias, é porque tem orgulho nela. Pessoas orgulhosas da sua terra cozinham melhor.
Vijeesh Rajan é essa pessoa. Vijeesh Rajan já andou pelo Indian Gate, de que é sócio o dono do Caxemira, e por um outro Kerala, em Campo de Ourique. Teve vida curta, esse restaurante. O patrão terá prescindindo da equipa da cozinha e da sala, que há uns meses se transferiu inteira para aqui, incluindo o agora dono e cozinheiro.
Vijeesh vai às mesas e controla tudo. E são dele as receitas e todas as preparações. São muitas preparações, com muitos nomes desconhecidos. Desconhecidos para nós, claro, pobres ignorantes. Quando olhamos para um menu e não vemos “caril” ficamos perdidos. Conhecedores do asthanga yoga e do power yoga, do parvatasana e do uttanasana, estranhamos tudo o que não tenha um molho natoso e seja cor de laranja ou castanho.
Chamar caril a um prato é insulto. Para um indiano, caril é reminiscência colonialista. Foram os ingleses que estabeleceram o conceito: pratos com molho e mistura de especiarias seriam todos caril. Eis uma das culinárias mais ricas do mundo, de um país com mais de mil milhões de pessoas (1,3 mil milhões), assim diminuída aos olhos de leigos espoliadores. Caril de galinha. Caril de borrego. Caril de camarão. Já está. Ah, e tikka masala. Ah, e garlic naan.
A carilização da cozinha indiana, assente num ingrediente comum nas misturas indianas – a folha de caril –, acabou por ser assumida pela maioria dos restaurantes fora da Índia e fora de Inglaterra, para fazer a vontade aos brancos. É, naturalmente, uma parvoíce. Imaginem chamar “refogado” a todos os pratos de tacho portugueses. Jardineira passava a ser refogado de vaca. Feio, ignorante.
Das 54 entradas incluídas no menu do Kerala só vemos a palavra caril sete vezes, e por especial favor. O resto são nomes indecifráveis como linguagem de programação informática. O ulli vada, bolinhos de cebola frita com massa de farinha de grão. O pidiyum kozhyium, pedaços tenros de frango guisados, acompanhados de bolinhos de arroz cozinhados em leite de coco. Ou o chemmeen theeyal, camarão cozinhado em pasta de coco assada e tamarindo, com palitos frescos de gengibre acrescentados no final.
Mais familiares mas não menos deliciosos: as caseiras “samosas” de frango, aromáticas de coentros e cebola, acompanhadas de molhos caseiros de tamarindo e tomate; a dosa simples, um crepe salgado típico da Costa do Malabar, onde Kerala mora, finíssima e estaladiça; e a bebinca, célebre bolo de camadas importado da vizinha Goa, obra- -prima da doçaria indo-portuguesa, feita de ovos, manteiga, coco, cardamomo.
Um reparo. Alguns pratos ganhariam com mais fogo: de malagueta e de fogão.
Em síntese. Kerala e Vijeesh Rajan brilham num restaurante que não é só mais um indiano.
Atenção ainda ao Facebook. De quando em vez, anuncia-se aí o sadhya, tradicional banquete indiano vegetariano, com mais de 20 iguarias servidas em folha de bananeira, para comer com as mãos.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.