Toda a gente sabe que o álcool dói. Depois dos trintas, então, o álcool massacra. Numa ressaca valente, é como um punhal a escarafunchar os lóbulos parietais, uma dor que nos transforma numa ameba esparramada num sofá a fazer zapping entre o Goucha e a Cristina.
E não, não há cá a cerveja é que me faz mal. Ou o vinho branco é que me faz mal. Ou a tequila é que me faz mal. Tudo faz mal.
Tudo, menos o saké. O saké não aleija. É uma bebida límpida, simples, elegante. Se for premium, leva praticamente só água de nascente, arroz e koji (a levedura que inocula o cereal). Talvez por o álcool ser obtido através de fermentação (e não por destilação), não nos agride. Mesmo se for do saké mais seco, com mais acidez, ou mesmo quando lhe é aduzido álcool, é um leitinho de arroz translúcido que nos limpa a boca e nos excita o espírito.
Isto e muito mais aprende-se com com Izumi Tezuka, sommelier certificada de saké há mais de 15 anos e fundadora do SakeMico, barzinho-loja em Campo de Ourique que só importa do bom e distribui nas melhores casas de Lisboa. Se já bebeu saké no Bonsai, na Tasca Kome, no Goo Ju ou no Kanazawa, é bem provável que a garrafa tenha vindo daqui.
A novidade é que, desde Agosto, pode-se também comer no local. E muito bem. De quinta a sábado, atrás do balcão está o chef Lucas Azevedo, para jantares-degustação sem carta e sem prazo (“Não sei até quando vou estar aqui, talvez mais uns meses”). A tarefa não lhe é estranha. Desde que saiu do Bonsai que o sushiman brasileiro, amante de arroz e de capoeira, tem andado com as facas na mala de um lado para o outro, a tomar as cozinhas dos outros por curtos períodos de tempo. Depois de uns meses no Japão, fez pop-ups por alguns restaurantes de Lisboa, com destaque para o Izakaya Tokkuri, ao lado de Vítor Adão.
No SakeMiko, apresenta-se a solo para uma degustação tradicional japonesa. O menu chama-se omakase, termo que significa “vou deixar isso nas suas mãos”. A refeição custa 45€ e pode – e deve – ser acompanhada com um pairing de saké – mais 20€ –, servido pela própria Izumi. O preço é o melhor compromisso de Lisboa para quem quer ter uma prova diversificada de técnicas e produtos japoneses e, ao mesmo tempo, experimentar meia dúzia de garrafas de saké: dos junmai, dos não pasteurizados e não filtrados, até aos ginjo, mais aromáticos, com adição de álcool.
Na comida, há várias entradas e pratos – contei mais de uma dezena de itens – e Lucas procura seguir a lógica kaiseki: cozinhados ao vapor, fritos, picles, assados, sushi, sashimi, legumes. O menu muda segundo o que a terra dá, e a terra é uma boa terra: a Herdade do Freixo do Meio, perto de Montemor-o-Novo, é o principal fornecedor de hortícolas.
Um jantar – só se servem jantares – pode abrir com um pudim de abóbora hokkaido, doce e concentrada, com molho ponzu. Depois seguir para algo mais intenso, como um croquete de pato com caldo de katsuobushi (atum bonito seco) e alga kombu. Entra-se então em coisas mais sérias, como o carabineiro com miso e caviar, acompanhado de sunomono (picle) caseiro de pepino.
O sashimi é um ponto alto, aqui uma dose curta mas cuidada, cortada com rigor, os peixes azuis (carapau, cavala) com banho de citrino como é das regras (no caso, yuzu), shu-toro e toro incluídos, o molho de soja com dupla fermentação e o wasabi extraído da raiz no momento (e não a habitual pasta de rabanete e mostarda).
Tudo muito subtil, o produto a falar, e o mesmo acontece na etapa dos grelhados, com carne de qualidade. Fez bem Lucas em escolher arouquesa e não a longínqua wagyu do costume. Com maturação de 36 dias, vem em tiras, só acompanhada de flor de sal, micro-beringela frita e dashi de tomate.
Para compensar o pecado da carne aparece depois um pratinho de acelga brigida com molho de sésamo, prelúdio de nova proteína animal.
O momento de sushi é, porventura, o preferido de Lucas, apaixonado confesso por arroz. Dentro desta etapa – e de todas, na verdade – os niguiris ganham em atenção e elogios.
O arroz moldado em dominós, os bagos colados mas definidos; o peixe fresco, com destaque para o shu-toro (parte superior da barriga de atum, apanhando a zona do toro mas também do akami, com a carne mais vermelha), balanço perfeito de gordura e acidez e umami, a apoteose dentro da apoteose.
Antes das sobremesas, altura ainda para a massa, que pode ser uma soba fria (massa à base de trigo sarraceno) com caldo de dashi de ouriço do mar.
Os doces são dois, mas o pudim de ovas com borras de saké devia ser obrigatório.
No final, isto tudo e meia dúzia de copos de saké, com direito a reforço, e uma pessoa levanta-se como um atleta. Acabamos sem a sensação de enfartamento que as degustações de fine dining nos impingem tantas vezes. O resultado é a prova de que Lucas segue os ditames japoneses, em que os momentos da refeição são pensados como um carrossel de técnicas e sabores a pensar na digestão.
Problema deste Harmonia by SakeMico? Há espaços que não são bem restaurantes mas adaptam-se bem ao serviço de cozinha. Não é o caso. O bar-loja não tem encanto nem é funcional. Quem come ao balcão, come virado para frigoríficos e não consegue ver Lucas a trabalhar na banca, demasiado baixa. No dia em que lá fomos, estava também demasiado calor e não havia ar condicionado, nem a extracção de fumos se mostrou eficiente.
Nada que diminua o valor da experiência se o seu foco estiver na cozinha, no saké, no preço e na ausência de ressaca. Mas, atenção: despache-se. Não tarda e Lucas volta a embainhar as facas e a partir para outro balcão.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.