De início houve alguma bazófia e era fácil embirrar com o sítio. Quando alguém sente necessidade de proclamar a sua “corrente criativa constante”, frequentemente acaba sozinho num onanismo preguiçoso gritando aleivosias contra os brutos lá fora.
Ninguém gritou no Loco mas a reacção a um projecto que se apresentava com “um outro nível conceptual”, “uma experiência total”, foi vigorosa. Um respeitável crítico gastronómico espanhol foi quem primeiro disse “nem tanto”. Depois de uma visita a Lisboa, Carlos Maribona escreveu no blogue do jornal ABC um texto amargo. Nem a cozinha do chef Alexandre Silva era assim tão original, nem a comida era assim tão boa, nem a meta-culinária se recomendava. O crítico achou pouca graça, sobretudo, a ser servido à boca. A coisa descambaria numa subpolémica: de um lado os que queriam ser servidos à boca, do outro os que não queriam. Em qualquer caso, Espanha punha a foice em seara alheia.
O terramotozinho na comunidade lusa foi imediato. Bloggers e facebookers espalharam a sua indignação contra o invasor espanhol. Gente pronta a marchar pelos povos de todos os feitios malhou no irmão ibérico como se fosse 14 de Agosto de 1385.
Toda a gente perdeu a clarividência. Toda, menos Alexandre Silva.
O texto de Maribona não deitou abaixo o chef, apresentado à nação em 2012, com a vitória no concurso Top Chef, da RTP. Silva já enfrentara dias difíceis e pareceu sempre aprender com os erros. O seu restaurante mais ambicioso, o Bocca, fechou pouco depois de abrir. E seguiram-se outros projectos efémeros. Em 2014, entrou por fim no Time Out Market da Ribeira (cujos proprietários são os mesmos dos desta revista), restaurante que mantém.
O Loco apareceu em Dezembro de 2015 como o sítio onde poderia por fim ser um autor com fundo de maneio para comprar um espaço nas traseiras da Basílica da Estrela, meter uma oliveira lá dentro e fazer uma cozinha high tech aberta para a sala, onde pudesse entregar em mão sardinha assada com melancia (e funciona mesmo) e fazer felizes as 20 reservas, e nunca mais de 20, que lhe entrassem pela porta.
Hoje, depreende-se, a sua preocupação é mimar essas 20 pessoas e conseguir uma energia nova na cozinha. É verdade que a retórica continua cheia de hipérboles; e que nem todos os 18 pratos que lá provei deslumbraram (mexilhão com maçã verde e aipo apaga o bivalve; o pastiche de bao com pasta de chouriço não sobrevive ao original pão com chouriço) ou é absolutamente novo. Mas no final o que importa é que não há mesmo, hoje em dia, outro jantar assim em Lisboa.
Olhando para os restaurantes do mesmo campeonato, em matéria de alta cozinha e de altos preços (100/150 euros), o Loco é neste momento, desde logo, o mais descontraído, dedicado e trabalhador. Essa é a sensação com que se sai e a impressão com que se entra.
Alexandre Silva começa por telefonar aos clientes no dia da reserva, dando as boas-vindas e tentando perceber das alergias e outros impedimentos. À chegada, a mesma hospitalidade, os empregados de sapatos desportivos cool com uma boa disposição convincente e educada. Não se impinge nada, só a conversa necessária para se decidir sobre o vinho e o menu – de 14 pratos (70€) ou de 18 (85€) – água com gás ou sem gás, tudo tranquilo.
Ajuda o espaço. Os cozinheiros trabalham à vista e a zona do fogão marca o ambiente: luzes teatrais, vapor de água escapulindo-se de um panelão como num laboratório louco. Na sala grandes janelas para a rua, madeiras escuras de linhas limpas, cadeiras confortáveis, painéis de acrílico pretos, a tal oliveira, modernidade e conforto.
Alexandre Silva raramente larga o seu posto junto à zona de passe. É ele quem fiscaliza os pratos e marca os ritmos, cientificamente cumpridos com uma cadência exemplar. De vez em quando vem à mesa, mas essa tarefa cabe quase sempre aos cozinheiros. As explicações são só o indispensável, os ingredientes principais, uma piada ocasional. A limpeza da mesa acontece quando tem de acontecer, depois de servidos os extraordinários pães caseiros feitos pelo pasteleiro Carlos Rodrigues.
De resto, a comida deste Loco produz muitos humms, e eu ainda não conheço outro método de avaliação de comida tão bom. O pastel de bacalhau, três ou quatro humms. O mesmo para as ovas de pregado com funcho. O carapau frito com alecrim e flor de sabugueiro um longuíssimo hummm. Dez humms para as ostras com água de flor de laranjeira e para o pato fumado, antecedido de um hummmíssimo pargo com caril tailandês e bolacha de spirulina. Nas sobremesas, um gelado fresco de pêra, camomila e miso. Hummm.
A refeição terminou com mignardises bem boas e com o pasteleiro Carlos Rodrigues a vir trazer uma prenda. Tudo porque havia feito um pedido extravagante a meio da refeição: que me guardassem parte do pão de cerveja e frutos secos que sobrara, uma parte ridiculamente pequena, para levar para casa. O pedido foi atendido na altura com discrição e simpatia. E eis que no final me é entregue, não a fatia ridiculamente pequena, mas um pão inteiro embrulhado como um rebuçado em papel vegetal.
É isto o amor. In Loco.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.