1. Loja dos Vinhos
    Rita Chantre
  2. Loja dos Vinhos
    Rita Chantre

Crítica

Loja dos Vinhos

5/5 estrelas
Numa esquina de Moscavide, Alfredo Lacerda encontrou um refúgio de cozinha portuguesa para além das banalidades do costume.
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  • Grande Lisboa
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Alfredo Lacerda
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A Time Out diz

Parecia tudo feito para ninguém lá ir. Na fachada lia-se Loja dos Vinhos, mas a montra anunciava bifanas e pregos, com as devidas fotos manhosas. Fiquei parado à porta, a pensar se seria mesmo para aqui que o meu amigo, especialista na zona Oriental da cidade, me queria enviar.

Nisto, um homem saiu para fumar. Deve ter notado o meu ar intrigado, porque aspirou o seu cigarro de brincar e, enquanto largava o fumo com cheiro a termas de São Pedro do Sul, atirou: “É mesmo aqui. É a primeira vez?”, perguntou, acrescentando: “Vai gostar. Não parece, mas é muito bom”.

Sorri e entrei, mas continuei desconfiado. O dono do restaurante demorou a vir ter comigo e eu fiquei ali abandonado, parado no meio das mesas, as pessoas a olharem para mim como se fosse um sem-abrigo a invadir um clube de cavalheiros.

Apercebi-me que era mesmo uma loja de vinhos, com prateleiras tipo Ikea cheias de garrafas. Não se viam, contudo, bifanas nem pregos, como ilustrado na montra. Nas mesas, iam poisando travessas de arroz de dourada, barriga de atum com molho de amêijoas, galo de cabidela, javali com feijão branco.

O ambiente era de estalagem feliz, quase todos homens, grupos de amigos a servirem-se de vinho como se fosse sábado à noite. O dono – e empregado de mesa e cozinheiro – multiplicava-se em tarefas. Por fim, veio ter comigo. “Está sozinho?”, perguntou. Eu assenti e ele logo contrapôs: “Olhe que nós não temos doses só para uma pessoa”.

Hesitei por uns segundos. Começava a sentir que não era bem-vindo, mas nesse instante vi passar uma travessa de batatas fritas disformes e hirtas como só essas cortadas à mão, a acompanhar um coelho frito. “Eu levo o que sobrar para casa”, decidi. O homem sorriu e indicou-me um lugar. “Com certeza”, disse, entregando o menu e voltando à azáfama do serviço.

A lista de pratos era imensa e não tinha coisas acessórias. Quase duas dezenas de pratos, todos principais, sem entradinhas, nem sobremesas, nem nada. 

A escolha foi difícil, mas acabei por ir para as lulas à Algarvia, algo que não via nas ementas há muito.

Nisto, abri o telemóvel para actualizar-me com as notícias, achando que, face ao rácio de clientes-empregados, teria tempo de ler o Público de uma ponta à outra. Enganei-me. Meia dúzia de minutos depois, o anfitrião aparecia com as lulinhas, muitas lulinhas.

Vinham sobre um molho denso, rico, base de refogado atomatado, com gomos de cebola aveludados, prova de muitas horas em fogo lento. As lulinhas estavam impecavelmente recheadas de arroz, tentáculos e, pareceu-me, chouriço picado – tudo bem apertado e seguro.

Comi sete lulinhas e levei para casa mais duas dezenas delas sobrantes. Não, não eram das frescas do Sado, mas estavam tão bem feitas e temperadas, e serviram tão bem ao almoço – e, depois, ao jantar, lá em casa –, que ninguém se lembrou de lhes pedir o registo de nascimento. 

Noutro almoço, noutro dia, sim, experimentei matéria-prima de luxo: lebre com feijão branco. Lebre é coisa que se encontra raramente, quase só em tráficos clandestinos entre amigos ou em templos da caça para ricos pagarem. Na Loja dos Vinhos, servem porções para três pessoas por 40€ e sai-se de lá com a barriga e a alma cheias. 

A carne no bicho veio profunda e escura, músculos secos, mas a saber a mato, devidamente hidratados pela molhanga onde nadavam, aromatizados por bolas de zimbro, servidos em travessa de barro, como se fazia nas tascas do Alentejo. Ainda na caça, há também a modalidade de javali com feijão branco, sendo que no que respeita a capoeira faz-se com frequência galo de cabidela. 

Quanto a vinhos, a lista apresenta uma série de garrafas como sugestões da semana, mas as opções fora da carta são imensas. Na verdade, o nome Loja dos Vinhos existe porque ali opera mesmo uma loja de vinhos. É possível comprarmos as garrafas expostas ou até irmos visitar a outra loja, ali ao lado, onde há ainda mais diversidade e quantidade. As referências vão bem além das banalidades dos restaurantes do centro de Lisboa. 

Para sobremesa, há bolos à fatia e sobremesas clássicas, como as farófias, aqui desmanchadas e semi-densas, feitas com doce de ovos a sério. 

Três visitas depois, questionei-me sobre como é possível só agora ter sabido deste lugar. Na era dos sites de reviews e dos influencers, como é que este tesouro tem estado fora dos rankings e das partilhas por WhatsApp? Que tipo de complot, que juramento terão feito os seus clientes para manterem o lugar em segredo? 

A verdade é que, apesar de ter 40 anos de existência, o restaurante já passou por várias fases. Antes, era o Roda, mas tinha outro conceito. Foi em 2016 que as coisas começaram a mudar. O casal à frente do espaço, reabriu como garrafeira, só com uma ou duas mesas para servir uns petiscos aos clientes dos vinhos e quem cozinhava era a mulher do dono. 

Sucede que o conceito manteve-se, mas os clientes começaram a ser muitos e foi necessário instalar mais mesas. Chegámos, então, aqui. 

Na hora de escrever, raras vezes como agora, senti-me a trair um acordo tácito de silêncio. Mas tenho este compromisso com os leitores há 12 anos: um crítico não pode fazer segredo dos lugares de que mais gosta. Isso seria egoísta, seria ir contra a natureza da profissão. 

A única coisa que vos posso pedir, por isso, é que respeitem quem lá está, quem lá serve. Não vão com pressa, não se zanguem se não houver lugar. O restaurante já tem muitos fiéis e eles já lá estavam antes. Sejam simpáticos, sejam cuidadosos. Estamos em terreno de reserva natural. Em perigo de extinção. 

Detalhes

Endereço
Rua Arminda Gomes de Carvalho 11
Lisboa
1885-031
Preço
17€-30€
Horário
Seg-Sex. 11.00-22.00, Sáb 11.00-16.30
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