A morada mais famosa da Rua Costa Pinto, em Paço d’Arcos, é a do restaurante Os Arcos — um clássico de toalha de pano e serviço de escola —, mas hoje entramos na porta ao lado: a Marítima. Com mais de 40 anos de idade, não tendo linguado au meunier, é um daqueles sítios onde somos capazes de ir só por causa de um petisco raro.
No meu caso, faço a viagem para as sardinhas panadas com salada russa, receita de antigamente com preço de antigamente (seis moedas de um euro).
Aprender a comer é também isto. Saber que prato escolher em cada restaurante. Saber que, mesmo nas cozinhas mais desclassificadas (e não é o caso desta Marítima), podemos encontrar uma entrada, um prato, uma sobremesa extraordinária, um negócio valioso.
Descobrir o encanto de cada restaurante – como de cada pessoa – por vezes demora, exige conhecimentos, faro, amigos. E não se iludam com a subsecção das “especialidades”: frequentemente elas são escolhidas por razões de ordem financeira.
Sucede o gerente esconder, precisamente, o que é melhor. Um exemplo: o meu bitoque preferido é de um sítio onde o dono não quer servir bitoque. E ameaça-me de envenenamento se eu o promover. Nunca lhe vi os dentes quando alguém elogia o seu majestoso pedaço de bife majestosamente coberto por ovo estrelado e molhanga; e sempre que o peço (99 por cento das vezes) ele atira-me com o resto da carta. “Não servimos só bitoque, sabe. A feijoada está óptima. E o lombo de porco, ui, ui!” A carne de bovino está cara, não é? É.
No caso d’A Marítima, as sardinhas foram-me indicadas por habitués. Em duas visitas que lá fiz, encontrei-as na parte do menu intitulada “Pratos Económicos”, subsecção amorosa, insólita e útil, onde não esperaria este petisco gourmet. Recorde-se que a sardinha anda a mais de sete euros o quilo nas bancas e que o prato exige mão-de-obra para ficar como deve de ser: limpar, filetar, passar por farinha, fritar.
De resto, sendo as sardinhas o que me faz pegar no carro e ir a Paço d’Arcos, seria injusto falar só delas. Nos pratos económicos, encontrei outras coisas boas, como os jaquinzinhos ou as fanecas fritas com açorda; ou um petisco cada vez mais raro, carapaus de escabeche com batata cozida — a cebola em lâminas grossas e viçosas, vinagre no ponto, contrastes simples mas emocionantes de gordura e acidez. Os meus amigos habitués elogiam também as favas à portuguesa e eu não tenho razões para duvidar deles.
Nas sobremesas, destaca-se o espera-marido. O nome tem origem incerta, mas pelo que percebi em deambulações na internet há uma versão popular no Brasil, com canela. Este, na verdade, é uma receita diferente, vulgarmente conhecida em Portugal por serradura, saudoso doce da casa popularizado nas décadas de 80 e 90, que intercala leite condensado, bolacha Maria desfeita, natas e gemada. Ainda hoje o podemos encontrar em restaurantes com cortinados recolhidos em embraces, candeeiros de feira de velharias e paredes forradas a madeira.
A sala d’A Marítima é assim. Tem o ambiente de uma dessas pensões antigas onde as pessoas falam baixinho e onde há sempre uma mesa com um casal de velhinhos aprumados avaliando silenciosamente as pessoas em redor, gente ainda com empregos e horário para almoço e colegas para maldizer. Em ambas as visitas, estava casa cheia, mas o ruído foi sempre respeitoso, como se a clientela estivesse constrangida pelo ar vetusto e náutico-militar da decoração, dezenas de quadros com embarcações de vária ordem forrando as paredes.
As casas de petiscos modernos e hambúrgueres já começam a entrar pela Rua Costa Pinto. Nada contra. Mas pessoalmente gosto também dessa possibilidade de poder comer uma sardinha panada num sítio sem decoração de pinterest dos pobres. Oxalá a Marítima não navegue à vista e mantenha o rumo.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.