Um dos grandes horrores de um fine dining são os bebés. Um bebé pode rebentar, não apenas com uma mesa, mas com uma sala inteira.
Ora, no Midori havia um bebé. Era daqueles bebés pequenos, ainda a cheirar a leite; um ser que passou o tempo a babar a mesa, a apontar aos copos Zwiesel e a projectar colheres Cutipol contra o chão como se estivesse a jogar ao prego.
Foram para aí umas dez colheres. Ainda elas iam no ar e já um empregado se lançava ao chão para as apanhar. Em segundos, outro empregado repunha o talher nas mãos do rapaz; importante era manter a micro-goela de macro-agudos fechada; importava, sobretudo, deixar o pequeno ser feliz e com ele o resto das pessoas; evitar que a bomba-relógio detonasse.
Milagrosamente, conseguiram. O miúdo fez trinta por uma linha, consumiu mais staff do que um sheik saudita, mas a brigada de minas e armadilhas do Midori controlou a situação. Ninguém deu por ele, toda a gente se virou para a comida. E que comida...
Admito que o Midori nunca esteve entre os meus japoneses eleitos. Tinha lá estado num dos seus célebres buffets, mas acho que buffet de comida japonesa – de sushi – é uma coisa que os chineses fazem com razoável economia e competência por 10 euros, não uma cozinha de hotel de cinco estrelas.
Comida japonesa de excelência deve ser todo o oposto: delicada e tranquila, deve ter um ritual, uma maneira de servir, uma certa reserva. E, apesar de estarmos num bastião chique da hotelaria do eixo Sintra - Cascais, nesses tempos idos, eu vi tias a limparem rolos de atum como quem avia tremoços, com a ganância contra-relógio que os buffets sempre instigam.
Nada disso tem a ver com o novo Midori. O chef Pedro Almeida mantém-se ao leme, mas o conceito mudou. Agora servem-se apenas refeições kaiseki, ou seja, pequenos pratos tradicionais japoneses. O espaço também é outro, mais íntimo, muito bonito, com umas vidraças largas, boas para almoçar com vista para os jardins do hotel Penha Longa.
Vamos à comida. O serviço sugeriu – com insistência, diga-se – que optássemos apenas pelos menus de degustação. Foi isso que fiz e ainda bem. O menu Midori (75€) abriu logo a destrunfar. No couvert, os rolinhos de alga nori assada, toro (barriga de atum) e caviar de esturjão ainda hoje estão alojados numa parte (fixe) do meu cérebro; o mesmo da bolacha de tapioca com água de lavagante que suportava um fresquíssimo tataki de carapau, peixe fetiche do chef.
Esta toada de comida saborosa, subtil e contrastante prosseguiu com o gaspacho frio com lombinho de carapau braseado, servido à parte; não descarrilou – longe disso – com o salmonete e manteiga de miso queimada (belíssima); continuou em altas na instalação de pedras roladas da praia, onde se escondiam lâminas de pargo curado em kombu, ouriço dos Açores (tão bom), puré de alga codium e folhas de ostra – pornográfico e marinho, a lembrar sexo nas rochas ou assim; atingiu o píncaro dos píncaros nos cubos de toro, puré de feijão frade e nato (feijão japonês fermentado), sobre uma bolacha de tinta de choco; e desceu, mas muito ligeiramente, nos pratos de niguiris, feitos com vinagre de arroz fermentado (magnífico o arroz, cada grão parecia um peça de joalharia), onde destacaria o de lula dos Açores, adocicado, complexo, fantástico.
O menu dá direito a apenas uma sobremesa, o que é curto para o preço que se paga, sendo que estava uns furos abaixo do resto da refeição – e esta será a principal fragilidade do sítio, ainda que se tenha corrigido de alguma forma o tiro com os óptimos mochi de tangerina que serviram como mignardises.
Ou seja, temos o Midori a lutar para uma estrela Michelin, fiquei claramente com essa ideia. E, portanto, como sempre acontece, é este o momento certo para lá ir e não daqui a uns meses, quando o guia dos pneus anunciar o novo mapa astrológico. Se o inspector que lá for tiver a mesma sorte que eu, é provável que uma nova estrela brilhe no Penha Longa.
Há técnica e identidade (lusa e japonesa) para isso. Há serviço para isso (jovem, em formação, mas no bom caminho). E há amor, gente boa e babysitters.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.