Começo a citar Woody Allen: “Não só deus não existe, como é impossível encontrar um canalizador ao fim de semana.” Faço-o por duas razões. A primeira é que citar Allen, Oscar Wilde, Mark Twain ou Groucho Marx é uma reconhecida panaceia para insuficiências criativas. A segunda é que a frase ilustra bem a minha desesperança quando busco uma tasca aberta ao domingo.
A dificuldade tem razão de ser. A tasca (conceito: estabelecimento modesto que serve cozinha de base tradicional portuguesa a preços de amigo, geralmente sobre toalha de papel e a partir de um balcão de inox) está formatada para os dias úteis. Da ementa pontual ao serviço despachado, tudo é pensado para ser bom, barato e rápido. Sempre. E é o conforto dessa inabalável certeza que eu cobiço para os meus domingos. Quanto vale então uma tasca aberta no dia do Senhor? Nunca menos que quatro estrelas.
Vem isto a propósito do Cartaxinho, casa de inspiração minhota nas traseiras da Avenida da Liberdade. Vim aqui na segunda-feira, dia de cabidela e cachaço de porco. O arroz ensanguentado estava no ponto de cozedura e vinagre, o galináceo firme, tudo a preceito. Já o pescoço do suíno nem por isso, um nada borrachoso e chamuscado, salvo apenas por umas batatas fritas caseiras. Voltei numa terça para atestar que o bitoque continua seguro e perceber que as alheiras “já não vêm lá cima, agora vêm da Makro”, mas continuam muito simpáticas. Em nenhum dos dias esperei mais que cinco minutos por mesa nem vi alguém esperar mais que isso por qualquer um dos vinte pratos da ementa.
Mas voltemos ao sétimo dia. Chego antes das 12.30 e apanho uma das últimas mesas de dois. Ao meu lado, duas senhoras asiáticas entretêm-se com cozido e sardinhas, ambos com óptimo aspecto. Uma chupa unha de porco com ar satisfeito, a outra disseca o peixe com uma curiosidade forense. Quando terminam, não há vestígio de desperdício nos pratos. O empregado rejubila.
Very nice, amazing, maravilha! Finish?
Maravilha?!...
Maravilha é good.
Ouh! Yes, yes, very maravilha!
Nas duas pequenas salas, não há sinal de outros turistas. Tudo fala português, alto e em bom som como o protocolo exige. O cozido é prato do dia (repete à quarta-feira) e eu benzo-me de felicidade. Chega-me numa pequena travessa oval, amontoado em 18,5 x 25 cm. Contas redondas, calculando a área da elipse e multiplicando pela altura média de 4 cm, estimo ter ali um metro cúbico para enfardar. Parece muito, mas é a medida certa. Belíssimas couves, arroz cozido no caldo, dois nacos de bovino gordo e um pezinho de porco, enchidos na conta. Acompanho com o vinho da casa, aceitável, redondo, ligeiramente refrescado. Tudo certo, very maravilha indeed.
Às 12.45 a sala está já apinhada e já tenho de acotovelar o vizinho para conseguir cortar o chispe. Às 13.00 está a baderna instalada e já só se consegue ser ouvido puxando pelo diafragma. Sinto-me em casa. Vou-me arrastando em ritmo domingueiro, saio perto das 14.00 com meia de cozido e meia de tinto no bucho, mais pão e café por 13€. Amém.
Crítica publicada originalmente na edição de Verão da Time Out Lisboa