Há muito que evito adjectivos quando alguém pede conselho sobre restaurantes. Se uma pessoa diz que um restaurante é incrível – muitas pessoas o dizem – o mais certo é que a outra pessoa, depois de lá ir, ache só ok. Isto é assim porque somos seres com papilas e gostos e educações diferentes, mas também porque pesa na avaliação outra coisa: a expectativa; e se a expectativa é alta há mais hipóteses de desilusão; há mais hipóteses de distorcermos a verdade.
O crítico de restaurantes deve por isso ser um combatente profissional da expectativa. O que implica, muitas vezes, defender-se do marketing e da notícia na revista, da entrevista sentimental ao chef e da inauguração com famosos, da dica do colega de profissão e do convite do assessor de imprensa. No momento em que se senta à mesa, o crítico deve esquecer tudo o que viu, ouviu e leu sobre o restaurante. Deve ser uma tábua rasa. Um estômago vazio.
Ora, vem isto a propósito da expectativa sobre O Mariscador. Aberto no início do Verão, o restaurante começou a ser falado muito antes, com alguns media a apresentá-lo desde logo como uma marisqueira de chef, com marisco de origens tão exóticas como Abrantes e Alcochete. Não tinha ainda ninguém levado uma gamba que fosse à boca e já se louvava o que não existia. Esse crédito deveu-se em grande parte ao chef por trás do projecto, Rodrigo Castelo, cujo trabalho na Taberna Ó Balcão tem sido amplamente elogiado, nomeadamente pelo trabalho de recuperação de produtos esquecidos, como a carne de touro ou a fataça. Mas sabemos bem que em matéria de restaurantes e chefs, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
E que coisa era esta, afinal? Sobreviveria O Mariscador à sua fama?
Fiz lá três refeições, recentemente. A primeira, aconteceu em modo solitário. Gosto de comer sozinho em restaurantes, mas este não é um restaurante para ir sozinho. Algumas das melhores comidas d’O Mariscador são para dividir e o menu, com ampla oferta, deixa ao comensal solitário a sensação de alguém que vai ao Ikea e só de lá traz um cabide.
Dessa primeira experiência, levei contudo bons acessórios. Excelentes as buchas de sapateira, uma bolacha e, por cima, o recheio da casca de sapateira, saboroso, com picles caseiros. O cone de coscorão, por sua vez, era suposto ter um ceviche de mar e rio, mas só vi atum, faltando o anunciado lúcio-perca, tudo coberto por camarinhas (pequenos camarões) desidratadas e tostadas. Muito bom o croquete de touro, a carne húmida no interior, por fora uma bolinha seca e crocante sobre mostarda portuguesa. O copinho “expresso de caranguejo da meia-noite”, gentileza da casa, era um caldo dos ditos de rio (ninguém diria), ligeiramente amargoso mas equilibrado, um grande shot.
A segunda refeição já foi com companhia e já permitiu repartir pratos. No couvert, apareceram outra vez as camarinhas, pão torrado e manteiga com pó de algas. Como principal, dividiu-se um arroz de lingueirão em versão Bulhão Pato. Veio num tachinho e de início deu a ideia que seria curto, mas o bivalve abundava numa relação de igualdade bonita e rara quando se trata de arrozes com cenas. Absolutamente perfeita a confecção por parte do chef executivo Bruno Ribeiro, a cozedura do cereal no ponto, os coentros aromáticos, a acidez, a manteiga. Por uma nota de 20 euros e uma moeda de um euro dá um almoço extraordinário e muito em conta, para duas pessoas.
O mesmo não se pode dizer do arroz de lavagante, que já requer três notas dessas (também para duas pessoas). É apresentado como prato bandeira da casa. O crítico sentiu-se na obrigação de o experimentar, depois de uma passagem pelo Multibanco (o mesmo que ATM). À terceira visita, com a voz trémula de emoção, lá se pediu o arrozinho do crustáceo. É preciso dizer que ultimamente me tenho cruzado (sem tocar) com muitos arrozes de lavagante. Não sei se de repente abunda o lavagante, se alguém descobriu a receita mágica ou se simplesmente as pessoas estão ricas. Sei que ele anda aí como areia na praia.
E estava bem bom. A base era a do arroz de lingueirão, com ligeiras diferenças. Pareceu-me haver dose extra de manteiga e o crustáceo surgiu caramelizado. Esperaria a carne mais elástica e rija e não a desfazer-se no arroz, talvez porque submetida a prévia cozedura a baixa temperatura — técnica que, a meu ver, quase sempre transforma coisas viçosas em coisas murchas. Não prejudicou o conjunto, mas ficou comprometido na relação com o de lingueirão: não se justificam os 40 euros a mais. Isto seguiu-se à “meia teca de marisco”, uma caixa de madeira muito bem recheada. Lá dentro, contava-se o seguinte: meia dúzia de ostras do Sado, notáveis, de diferentes calibres mas todas elas a lembrar-nos dias de praia a engolir pirolitos nas rochas; uma casca de sapateira com o já elogiado recheio, aqui num creme fresco, fiapos de carne do bicho e picles no topo; camarões de Moçambique e gambas rosa com atenção rigorosa ao tempo de cozedura; percebes grandes mas com um ou outro já desidratado; búzios igualmente saborosos mas igualmente secos; lagostins brancos cozidos, a carne delicada e elegante; e à parte uns mexilhões com molho de citrinos, vibrantes e gulosos. A terminar, houve um gelado de limão bom para limpar a boca.
Numa das visitas comeu-se na sala do primeiro andar da praça de touros. Tudo bonito, desenhos de mariscos nas paredes, candeeiros em forma de redes, obras de autor. Na última visita, só a esplanada coberta estava a funcionar, algo incompreensível num dia com temperaturas acima dos 30 graus.
O Mariscador tem excelente comida, com um equilíbrio bem-vindo entre inovação e tradição, e tem entrada directa na primeira liga das boas marisqueiras da cidade. O restaurante de Rodrigo Castelo poderia mesmo ter atingido a excelência, não fossem algumas falhas no serviço e no produto. Oxalá, ganhe consistência. Lisboa precisa de mais marisqueiras assim. Acima das expectativas.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.