De todas as povoações à beira da Marginal, Paço d’Arcos é o lugarejo mais pitoresco e popular de todos. Se nos conseguirmos alhear do géiser, esse ícone autárquico do Portugal moderno, o porto de barquinhos balouçantes é uma aguarela colorida e ternurenta; e do outro lado da estrada resiste ainda o jardim municipal, com capoeira de aves exóticas e coreto.
Foi precisamente no coreto que almocei, em regime de esplanada, o melhor regime deste O Pastus. Daqui se vê o casario histórico da vila e, no flanco oposto, o rio ou o mar, consoante as crenças (segundo o empregado, a partir da Cruz Quebrada é oceano. “Para mim, se a água não tem salmonelas, é mar”, atirou, espirituoso).
Não se fez análises ao Tejo, mas com certeza se pode dizer que a maionese dos pastéis de bacalhau que abriram um almoço solarengo estava limpíssima de micro-organismos e espevitou uma quenelle rigorosa, batateira e especulativa (2,5€ a unidade).
Logo aqui se pôde ver a celebração do novo e do velho, conceito também dado a conhecer como “cozinha da avó com um toque de chef”. No caso, não sabemos quem é a avó, mas sabemos que o chef é Hugo Dias de Castro. Antes de se mudar para a Linha, Hugo liderou a Casa de Pasto, ao Cais do Sodré, constando ainda do currículo passagens por fine dinings de sifão, como o que terá sido usado para a espuma de requeijão que fez par com a manteiga de malagueta no unto do pão do couvert.
Que pão? Ficou a dúvida. A carta dizia trigo barbela, o empregado falou em “pão feito na casa, de centeio”; eu apostaria que era um trigo com um pouco de centeio, saboroso mas subfermentado.
Fomos em crescendo sempre, repartindo pratinhos em consonância com o espírito do sítio. A empada de perdiz com mexilhão veio acidulada, a massa massuda e o bivalve oculto. Eis depois a cavala curada com salada russa, tão mal tratada a sul do Porto, aqui viva e crocante: batatas em cubinhos geométricos, feijão verde e ervilhas da época, já doces (indício de que a cozinha de mercado se cumpre e não é só chavão), tudo ligado por uma “emulsão de santola”.
Nos pratos mais sérios, dois pesos pesados do reportório tradicional – bacalhau à Brás e rabo de boi – ambos contando com diversos remixes nas tabelas dos restaurantes das últimas duas décadas. Ou seja, dois pratos em que a recriação pode ser também ela um cliché, como uma dessas músicas sintetizadas de hits dos anos 1990, que ora nos fazem rir, ora chorar.
Enfim, nem uma coisa nem outra. O Brás era muito bom, versão com o ovo cremoso e tudo raladinho. O bacalhau veio servido no topo, em troço inteiro, suculento, cozido no ponto mas de cura fraca.
Por sua vez, o rabo de boi estava perfeito, a chicha prensada e selada, a acompanhar uma folha de couve kale braseada, cheia de notas amargas que contrastaram muito bem com o adocicado do puré de cherovia, também ele irrepreensível.
Fechou tudo com notas luminosas e frescas, em modo gelado de morango e ruibarbo, bem pensado e melhor feito.
Carta de vinhos com poucas opções, em particular a copo. A demora do serviço, um sinal dos tempos, quase uma hora para ser servido o primeiro prato (poderia pelo menos ter vindo acompanhada de um aviso à navegação).
Em síntese. Está-se muito bem no coreto marítimo de Hugo Dias de Castro, que nasceu já depois da pandemia, em Junho de 2020. Com as afinações que o desconfinamento certamente irá proporcionar, tem potencial para se tornar numa das mesas ao ar livre mais interessantes do rio. Perdão, do mar.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.