A sala é simples, mas amigável, aberta à rua de um lado e à cozinha do outro, como uma metáfora do que nos espera no prato (onde o peixe vem do mar que se encontra do outro lado da estrada). Quando o tempo permite, há comida no coreto do jardim em frente (duas ou três mesas que vale bem a pena tentar reservar quando disponíveis). Na última visita, numa noite de chuva com apenas uma outra mesa ocupada, o restaurante parecia mais frio e algo triste. Com a comida, no entanto, voltam os sorrisos. Um pouco como a estória deste projecto, uma estória de lágrimas de tristeza e felicidade unidas pela paixão pela comida e a paixão que essa comida desperta em nós.
Até que ponto as histórias pessoais de um restaurante influenciam (ou devem influenciar) o que escrevemos sobre ele? Devemos sequer expor essa intimidade? Podemos, por outro lado, não o fazer e ser verdadeiramente sinceros? Hesitei escrever o que se segue. Escrevendo, posso ser acusado de explorar uma emoção que não me pertence. Mas se não o fizer, estarei ocultando de vós algo que seguramente influencia esta crítica. O que sentimos quando comemos é sempre influenciado pelo contexto em que comemos. Já provei exatamente a mesma coisa várias vezes sentindo coisas muito diferentes (melhores e piores) consoante o momento e o contexto em que ocorreu. A crítica gastronómica, como qualquer crítica, é tanto resultado do que é criticado como do estado de espírito de quem critica.
O Pastus tem uma história bela e dramática. Da primeira vez, fui quase ao acaso. Uma decisão de última hora e a necessidade de encontrar algo na zona. Comi no coreto e adorei o que comi. Voltei em pouco tempo e adorei novamente. O restaurante era o projecto de um jovem casal: o chef Hugo Dias de Castro e, no serviço, a sua mulher Annakaren Fuentes. Em Dezembro de 2023, o Hugo morre inesperadamente. Pouco a pouco, Annakaren foi passando da sala para a cozinha. Assumiu o projecto como uma homenagem a Hugo e permanece fiel à identidade original: uma cozinha criativa de produto, assente numa relação com pequeno produtores, preferencialmente locais. Pouco a pouco, porém, essa identidade tem assumido uma forma nova que exprime o trajecto e personalidade de Annakaren. O restaurante não se tornou uma homenagem ao Hugo, preservando os pratos dele. A homenagem está em provarmos o que é hoje a comida do Hugo e da Annakaren. O projecto continua a ser de ambos, mas agora através da comida. A Annakaren tem vindo a trazer a sua marca sem deixar de ser fiel ao Hugo. É verdade o cliché: a comida pode ser um acto de amor, até um restaurante!
A marca pessoal da “nova” chef é visível, desde logo, no meu snack favorito e uma das estrelas do menu: empanada de picanha com abacate e coentros. Annakaren apresenta a sua origem mexicana. Uma empanada plena de sabor, cuja intensidade é refrescada pelo abacate e coentros. É aquele tipo de bite que nos leva a ponderar abdicar do resto do menu e ficar a noite inteira a comer empanadas… Seguiu-se uma enguia, com um molho barbecue coreano em que se usam as espinhas da própria enguia. Bom, saboroso, mas eu puxava ainda mais pelo lado coreano da acidez. O prato seguinte foi, talvez, o menos conseguido da noite: cogumelos selvagens com hummus e piso de ervas. Um prato que prometia, mas que falhou um pouco na execução. Os cogumelos estavam algo elásticos e sem o sabor que esperaria (diria que não foram cozinhados ao momento). Faltava também alguma textura (que poderia ser aportada pelos próprios cogumelos se estivessem cozinhados na perfeição). A temperatura algo fria também não ajudou. Em geral, aliás, as temperaturas a que os pratos foram servidos merecem alguma correção: quase sempre abaixo do desejável. O bom nível voltou com a valorização de um peixe como a cavala, que tem tanto de bom em sabor como de arriscado quando não é bem cozinhada. Não é um prato que dê grande margem para errar à chef. Aqui, teve o tratamento que merece e estava bem acompanhada por um patê de peixe, cenoura e funcho. Faltou apenas algum contraste de texturas e acidez.
Nos principais, o prato da noite foi a corvina. Veio quase literalmente do mar para o prato. Proveniente de pescadores de Paço de Arcos, o peixe era de excelente qualidade e estava muito bem cozinhado. Veio acompanhada de uma boa brandade feita com aipo e de emulsões de pil pil e de ouriço do mar. Um prato arriscado na forma como juntava picante e acidez ao pescado, mas que resultou num equilíbrio perfeito, incluindo um magnífico pickle de espargos. Boa também a carne, com um cachaço de porco malhado de Alcobaça (uma raça óptima que tem vindo a ser recuperada e valorizada por produtores e talhos da região como o das Manas). Não estando rija (longe disso), podia estar ainda mais macia. Um molho de caril butter masala surpreendeu-me, mas funcionou bem: rico e poderoso, mas equilibrado e beneficiando mais uma vez do contraste com uns pickles. Tudo acompanhado desde o início da refeição de um óptimo pão de fermentação lenta. Bons e gulosos, mas nada enjoativos, os doces, em particular o de gengibre, coco e caramelo com miso. Carta de vinhos curta, mas com algumas opções interessantes e preços razoáveis.
Esta é uma cozinha que funde produtos locais com técnicas de inspiração sul-americana e asiática. A Annakaren está a deixar a sua marca pessoal nos pratos do Pastus, mas com um enorme respeito pela filosofia original do Hugo. Eis um restaurante que nos apaixona mantendo viva uma paixão.
*Esta crítica foi originalmente publicada na revista Time Out Lisboa, edição 671 — Outono de 2024.