É uma história lisboeta. Eurico era um miúdo da província mandado para Lisboa para trabalhar numa carvoaria, quando tinha idade para jogar Fortnite. Essa mesma carvoaria, nas traseiras da Igreja de São Cristóvão, haveria de ser dele e ele haveria de fazer dela uma tasca como deve ser, na carta rojões e peixe frito e bacalhau à minhota.
Acontece que Eurico reformou-se em 2018. Nisto, um grupo de miúdos com escola de hotelaria e experiência taberneira tomou conta da casa há meia dúzia de meses. Acabaram com as ementas, as cadeiras de alumínio e as toalhas plastificadas, mas não alteraram o essencial: servir cozinha tradicional portuguesa.
Nascia, assim, mais um exemplar da neo-bistronomie tuga, parente próximo da Taberna Sal Grosso, onde aliás o actual dono trabalhou.
A visita ao restaurante, ali onde a Mouraria sobe ao Castelo, aconteceu ao jantar, fim-de-semana. Casa cheia, perto de 40 pessoas divididas por duas salas. Por fora, quase tudo na mesma, a dupla portada fechada, como se estivéssemos perante um clube secreto. Não há campainha, nem nada. Para que alguém acorra, é preciso bater na madeira com os nós dos dedos e isso dá uma sensação curiosa de sítio arcaico e misterioso.
Lá dentro, todavia, encontra-se um festim de comida e bebida, uma estalagem contente: aromas a vinha d’alhos, pratos de bacalhau à Braz em todas as direcções; jarros de vinho, canecas de barro em brindes vigorosos; um garrafão de misterioso líquido translúcido, designado como “bagaço do avô”, passando de mesa em mesa, como um desses cigarros psicotrópicos numa roda de amigos.
A ementa está toda escrita numa ardósia afixada na sala – ou salas, que há outra escondida de igual dimensão. Nessa noite, a oferta era de 11 pratos, os preços entre os 7,50€ por umas iscas aos 9,50€ pelo polvo à lagareiro, tudo doses pequenas para partilhar. Havia ainda dois snacks: croquetes de borrego (2,50€ cada) e pastéis de bacalhau (1,50€). E acompanhamentos: batatas fritas, migas de farinheira, grelos e chouriço e arroz de feijão (3€-4,50€).
Veio para a mesa quase toda a oferta, a começar no ex-líbris da casa, o bacalhau à Brás. Versão com o ovo líquido, batata frita palha caseira acrescentada no fim. Aplausos. Depois, choco com tinta e batata cozida, o molusco tépido, cortado em juliana, num vinagrete negro com cebola picada. Mais aplausos. Feijoada de sames bem apaladada de enchidos e cenoura, os troços da bexiga natatória sobre-cozinhados. Cabidela de galinha escassa de sangue e vinagre, mas muito saborosa e com o arroz no ponto, técnica mista de malandrinho e risoto. Iscas de cebolada suínas fininhas e bem temperadas, batatinha cozida submersa em gordura baça de banha – gulosa. Nos intervalos, picaram-se azeitonas verdes com ervas e pão do fofo e fresco. E também os croquetes de borrego e os pastéis de bacalhau fritos na hora – ambos menos bons: os primeiros oleosos, os segundos desmanchados.
Terminou-se com arroz doce, clássico em versão com ovos, e lamentou-se já não haver o famoso leite creme da casa.
No final, pagaram-se 20 euros por pessoa, preço mais do que justo por um óptimo jantar.
Em síntese. O Velho Eurico já não é o modelo da taberna moderna em voga em 2010, tantas vezes produções sofisticadas de fake typical. Manda aqui o receituário regional, sem intromissões autorais e sem importações com sotaque castelhano. Menu coerente, aparentemente com algumas mudanças de ocasião, de acordo com a época e o produto. Bom ambiente, serviço expedito e conhecedor, má ventilação, carta de vinhos curtíssima e fraca. Tudo como se quer numa taberna.
Saí de O Velho Eurico esperançoso. Miúdos como os de O Velho Eurico, ao contrário das gerações anteriores, não começaram a carreira obcecados com o beurre blanc ou com as esferificações. Estão a praticar cozinha tradicional e isso há-de resultar numa coisa nova, mais identitária, menos igual a Londres, Nova Iorque e Copenhaga.
É verdade que não podemos saber, com certeza, onde eles estarão em 2025. É provável que um dia destes se cansem – sabe-se que a profissão é de desgaste rápido. E também é possível que vão à procura de outra coisa: mais dinheiro, outras cozinhas, outras latitudes. Mas o que se nota, por agora, é uma alegria imensa em servir e cozinhar as receitas dos pais, dos avós, dos bisavós, do país; uma energia e atitude novas – sem adereços de pechisbeque, sem manhas no serviço, sem marketing. Uma energia feita de paixão e tachos e livros antigos. Um bálsamo extraordinário numa cidade que parece outra vez apaixonada por Portugal.
A história lisboeta continua. E o velho Eurico pode orgulhar-se dela.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.
Alfredo Lacerda escreveu esta crítica a 17/02/2020.