Comecemos pelo melhor: a salada quente de polvo e pimentos, servida de entrada. O prato vai directamente para o top dos pratos mais deliciosos que comi este ano – uma surpresa, até porque comi mais polvo do que tremoço, em 2023.
Hoje em dia, o polvo está por todo o lado, cozinhado à Brás ou à Meunier, grelhado ou guisado, na pressão, no Josper ou no sous vide.
O polvo tomou os menus porque abunda, porque descongela bem e porque não há proteína mais fotogénica no Instagram: uma perna de polvo enrolada é uma imagem hipnótica e sexy como as pernas da Anja Rubik.
A salada quente do Oitto estava morna (e não quente), e assim deve ser, a carne do molusco suave, cozida no ponto e depois entalada no forno com fumo, por cima um manto de molho cremoso, a lembrar mais um salmorejo do que uma massa de pimentão – o tempero afinadíssimo, doce e salgado e vinagre bom a espevitar tudo.
De resto, foi assim com o resto da refeição: afinação e cuidado. Na cozinha do Oitto, mesmo sem o chef Carlos Afonso Duarte presente, os cozinheiros provam a comida e não deixam que nada vá para a mesa salgado ou insonso, ou sem sabor.
Podemos, aliás, comprovar isso, porque eles estão ali ao nosso lado, atrás do balcão que separa a cozinha aberta da sala, absortos e focados como cirurgiões, sem perder a noção do tempo.
Numa dia da semana, à noite, sala meio vazia, os pratos chegaram num instante, três entradas de uma vez, incluindo uns “croquetes de batata e alheira, espinafre e alho assado”.
Dirão os leitores regulares: “Oh, Lacerda, croquetes de alheira?! Mas isso não é crime?!” É sim, mas quem nunca cometeu um que atire a primeira trouxa de morcela e maçã.
Não era, de resto, a habitual cena-frita-com-alheira-manhosa-dentro. Por fora, farinha panko, por dentro alheira de qualidade, por cima uma maionese de alho boa. Se a batata e os espinafres e o alho assado sobressaíram? Não. Se soube bem? Soube.
Melhor ainda esteve o ceviche de corvina, ligeiramente doce, mas especial: notas anisadas e elegantes, picles e cebola cortados a lupa e x-acto, o peixe suave e limpo, cada dentada um foguetório de pequenas coisas a explodir.
Nos principais, destaque para um clássico que Carlos Duarte Afonso trouxe d’O Frade, em Belém, restaurante onde o chef se iniciou em nome próprio: o arroz de pato. Eis o seu prato-bandeira, híbrido entre o malandro corrido português e o risoto, a carne desfiada, chouriço caseiro aos pedaços, conforto e umami – à beira de se tornar um clássico.
Menos expressivas as sobremesas, ainda que ambas bem. A mousse em modo cimento fresco, de chocolate negro, amêndoas e bolacha a fazer barulho. O “doce da casa”, por sua vez, a querer ser da tasca, sem sucesso, só a bolacha Maria a ligar, de resto tudo demasiado sofisticado para ligar ao popularucho.
Fora as comida, a carta de vinhos tem algumas garrafas menos vistas por aí – não muitas – mas está longe de ter uma identidade ou preciosidades acessíveis. Os vinhos a copo começam nos 7€ – e não estamos a falar dos tintos de talha alentejanos, que Carlos Duarte Afonso tão bem conhece.
Dito isto, quanto ao espaço, o Oitto ocupa um lugar no Chiado onde outros restaurantes sucumbiram. No dia em que lá fui, uma quarta-feira, o ambiente era um pouco tristonho, sem que se perceba bem por culpa do quê. A decoração tenta ser sofisticada, tons escuros, aqui e ali madeiras e apontamentos de mármore lioz.
No serviço, o chefe de sala é extrovertido e hospitaleiro e procura animar as hostes, rumando contra a apatia dos colegas. Teve um desacerto estranho, quando anunciou que o azeite era Oliveira da Serra. Por momentos, ficou a ideia de que se tratava de uma piada – mais uma –, mas ele insistiu que era a sério.
Feita a prova, percebeu-se que não era Oliveira da Serra (“Só se o mudaram, entretanto”), mas um azeite mais saboroso (e também com um pouco de tulha), porventura de produção caseira para o restaurante.
Em síntese. O Oitto é um restaurante raro em Lisboa. Fora dois ceviches, é cozinha portuguesa contemporânea, sem tonterias, um fine dining de conforto, que tanto agrada a um alentejano como a um dinamarquês. Tenho dúvidas que vença, todavia, porque não apela aos novos ricos, mais atreitos ao posh e à festarola e à passadeira de outras moradas, nem apela às pessoas comuns, turistas incluídos, que não têm 60 euros para lá ir gastar num jantar.