Em frente à praia não apetece comer estufados, carnes muito pesadas nem coisas com grandes molhangas. Um grupo de jovens chefs e pessoas ligadas à cozinha, portugueses e estrangeiros, concordou com esta máxima, mas acima de tudo com a necessidade de mostrar o bom produto português, do peixe e petiscos típicos aos vinhos naturais, num cenário diferente da já lotada capital e com uma boa dose de criatividade. Foram até à Costa da Caparica, à praia do CDS, e tornaram-se vizinhos do mítico Barbas: o projecto Ona, de Luca Pronzato, está a fazer um take over ao espaço do restaurante Dr. Benard. Mas atenção: só dura até Outubro de 2019. O menu não tem distinção entre entradas e pratos principais, há “comida para partilhar” e recomendam três pratos por pessoa.
Crítica:
Esta é a primeira vez que não esperamos três meses depois da inauguração de um restaurante para fazermos a crítica. Porquê? Porque o Ona não é bem um restaurante. O Ona é aquilo a que hoje se chama de pop-up, ou seja, um restaurante efémero. No caso, está agendado para durar apenas seis meses, abriu em Abril e prevê-se que feche em Outubro. Uma pena.
No comando encontra-se um ex-Noma. Luca Pronzato, francês, especialista em vinhos, trabalhou durante dois anos no famoso restaurante de Copenhaga, para muitos ainda considerado o mais influente do mundo ocidental. É ele quem dirige a sala e serve a maior parte da comida. O resto da equipa, todavia, é mais juvenil e inexperiente, característica anunciada como virtude orientadora: “O Ona quer dar a possibilidade aos jovens chefs de definirem a arte da comida e do vinho”, lê-se no site do projecto, que acrescenta: “Apesar de trabalharem em alguns dos melhores restaurantes do mundo, os jovens chefs são impedidos de expressar a sua verdadeira criatividade.”
Enfim, nem tanto. Os jovens são impedidos de muitas coisas, às vezes bem, outras mal. Em todo o caso, os jovens chefs precisam dos velhos chefs. Os velhos chefs servem, entre outras coisas, para lembrar os jovens chefs de que a cozinha não é uma arte inócua, mas um alimento que obedece a uma físico-química, a um conhecimento e a uma experiência, obtidos pela tradição, pela prática ou pela academia. Usada como mera arte, a cozinha pode magoar.
Não é, felizmente, o que acontece neste Ona. O restaurante tem várias tendências internacionais dentro – dos vinhos naturais ao produto sazonal, passando pelos petiscos para partilhar –, mas serve clássicos portugueses, todos bons ou excelentes, com muita proteína marinha e pouca verdura.
Entremos. A palavra Ona significa “onda” em catalão e é apropriada à geografia da Praia do CDS, na Costa da Caparica, onde o restaurante se instalou. O espaço é o do antigo Dr. Bernard, um caixote sobre o areal mesmo ao lado dos caixotes do Barbas, o adepto benfiquista, padrinho do sítio. Pródiga em vagas perfeitas, a praia do CDS faz do Ona o melhor restaurante de Portugal para se ver surf. A esplanada fica mesmo em cima do paredão onde seniores se cruzam em passo rápido como mandou o médico. O interior foi arranjado e sofisticado, madeiras, tudo muito orgânico.
Na carta aparecem uma dúzia de pratos, a contar com os peixes para grelhar, expostos em vitrina, já com o preço de acordo com o peso, uma boa prática. Os preços dos petiscos andam entre os cinco euros do couvert e os 15 euros das amêijoas, recomendando a gerência que se peçam três pratos por pessoa. No caso, fomos pelo menu de degustação de nove pratos, com o valor de 40 euros por pessoa, fora bebidas, copos a partir de seis euros.
O couvert é contabilizado como um prato e tem o omnipresente pão da Gleba, aqui acompanhado de umas azeitonas galegas magistralmente temperadas com orégãos, casca de limão e bom azeite, bem como de manteiga de cabra e de requeijão de ovelha. Seguiram-se as favas com chouriço. Favas já grandes mas sem pele, ervilhas, óleo de chouriço, chouriço preto e os maravilhosos espigos floridos dos coentros, tudo elegante e perfumado. Terminava aqui a carne, depois só deu coisas do mar, sendo que a intensidade foi decrescendo, a maior disrupção da refeição.
Eis então os carapauzinhos fritos com molho à parte de “salmorejo algarvio”. Fora a designação, que me parece pouco rigorosa (era essencialmente um salmorejo andaluz), estava perfeita a fritura do peixe e o creme onde o imergimos: fresco e avinagrado, pepino, cebola, alho e pimento. Passagem para a meia desfeita de bacalhau, este confitado e gordo, servido em lascas sobre grão e feijoca (feijões grandes e achatados), a espevitar de frescura cebola roxa e salsa a saber a erva, verde e intensa, azeite e vinagre em equilíbrio perfeito.
Voltamos aos fritos, com um camarão anunciado como sendo “da costa” e tendo pimenta da terra, a maravilhosa pasta açoreana de chiles. O marisco não seria da Costa da Caparica e duvido que fosse da costa portuguesa, sendo tão grande e com a coloração típica do camarão de outras proveniências, como o de Moçambique – mas a jovem empregada insistiu que haviam sido comprados frescos a um fornecedor local, uma coisa que não desmente a outra. Em todo o caso, a verdade é que estavam estupendos de frescura e isentos de fénico, firmes e suculentos, banhados com um molho de alho picante que obrigou a reforço de pão.
Numa esplanada sobre a praia não podiam faltar também as amêijoas à Bulhão Pato. Versão suave, menos puxadas de alho do que o costume, o alho mais fresco, picante e cru. Seguiu-se um dos pontos altos, o arroz de berbigão. Parecia simples, a imagem um pouco monótona, só o arroz e o berbigão num caldinho pálido, mas na boca percebemos que havia técnica e produto, o bivalve de calibre grande – raro –, tenríssimo, só um calorzinho para abrir as conchas. Terminámos os salgados com outro clássico marinho: lingueirão. Cozedura no ponto, caldo amanteigado com um toque subtil de doce e de mentol, próprio da hortelã da ribeira.
Quanto à sobremesa, era uma farófia com doce de caramelo e amêndoas torradas: muito boas, as claras nuvens fofas, o leite leve e cítrico. Éramos três, mas inexplicavelmente foram servidas apenas duas.
Esta foi uma das poucas falhas do serviço, que no geral esteve correcto no ritmo e no tom – informal e poliglota, tal como a equipa. Houve apenas uma excepção. Um dos jovens cozinheiros que veio entregar o prato por si confeccionado, tratou um ancião da mesa por “tu” e abusou do “bué”. Cozinheiros a entregar pratos é uma tendência e faz sentido, como aqui já se escreveu. Já me parece excessivo falar-se com um sexagenário como quem está a rodar charros numa mesa de lerpa.
Em síntese. Culinariamente, os jovens criativos do Ona mostraram ser sensatos. Não se confirma, portanto, a ideia de uma residência artística onde imberbes cozinham puré de caroço de nêspera fermentado e kombucha de alho, nem se cumpre a ideia estatutária de quebrar amarras com uma geração opressora. Há, isso sim, comida do mar bem feita e com óptimo produto, um ou outro truque de fine dining sem que isso altere a essência do petisco, boa música e bons vinhos no estilo natural e biodinâmico. De resto, o preço é puxadote tendo em conta a média da Margem Sul, mas a Margem Sul também tem direito ao seu preço puxadote.
O paredão da Caparica passou a ter bistronomie à beira-mar. O que se espera, agora, é que jovens chefs e jovens clientes dêem tudo até Outubro.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.