As esquinas têm má fama, mas dão restaurantes muito bonitos. Não sei se o preço do imobiliário reflecte isto, mas uma esquina é uma charneira de gente, uma relevância arquitectónica particularmente bela onde a comunidade gosta de parar e conviver.
Ora, se a esquina for na Madragoa e estiver ocupada por um casal franco-japonês de artistas que viveram na Califórnia e praticam a simpatia, então temos um dos mais encantadores e extravagantes lugares de comer de Lisboa.
Não pensem no restaurante japonês clássico, com serviço convencional. À chegada, Christine, a parte francesa da dupla de proprietários, pode estar a conversar com os vizinhos enquanto termina um cigarro e perguntar-vos, com delicadeza, se lhe permitimos que acabe de fumar. Ninguém leva a mal, porque depois Christine passa a correr e dá tudo.
Lá dentro, a pequena sala é uma galeria de arte patusca, com quadros inquinados de Yoshi – a parte japonesa – a conviverem com o balcão de alumínio e a torneira de imperial, estética que pode ser vista como preservação da memória do snack-bar ou então só preguiça e falta de investimento. Cabe a mesa comunitária e mais outra para duas pessoas, nada particularmente arrumado, o lugar perfeito para beatniks reformados serem felizes a servir amigos.
É esse o ambiente e poucos minutos depois de nos sentarmos já estamos encantados com a energia feliz de Christine, que se esforça por comunicar num português carregado de erres e põe mãos à obra, só ela na cozinha atirando-se àquilo que faz melhor: onigiri.
O que são onigiris? Onigiri são sandes de arroz. Dito assim parece uma parvoíce, mas isso é porque os portugueses comem péssimo arroz. Entre nós, o arroz deixou de ser uma coisa boa em si há muito tempo. Isso tem a ver com a porcaria que se vende por aí – ainda por cima envenenada de químicos maus – e com o descuido na preparação.
Para a maioria dos tugas, cozinhar arroz resume-se à ciência das duas canecas de água para uma de arroz. Não interessa a variedade do bago, não interessa como foi produzido – o bio é uma extravagância cara –, não interessa como foi lavado, nem interessa o caldo. É só: quanta água? Quanto arroz? Quanto tempo? Depois liga-se o lume e volta-se daí a 12 minutos, o tacho como uma caldeira das Furnas e o agulha aos saltos, insípido como Deus o fez.
Não são isto os bons onigiri. Os onigiri são da família das rice balls, embora triangulares, feitos de arroz para sushi, bago curto. No Japão e nos EUA vendem-se como comida de pegar e levar, mas desengane-se quem pense estarmos perante modernice de cadeia de restaurantes. Os onigiri nasceram antes de Afonso Henriques. Há, aliás, poucas coisas japonesas que se comem sem pauzinhos – esta aparentemente surgiu antes de isso ser prática.
Portanto, temos arroz e depois temos coisas que se misturam, normalmente espalhadas entre o cereal. Que coisas? O que se quiser. Christine respeita a vertente mais tradicional, com os clássicos kakuni, de porco chinês dongpo, o de atum, ou a especialidade com unagi. O unagi é uma cura doce de enguia e um dos petiscos mais celebrados e complexos do Japão, que Christine arrisca fazer de raiz. Por vezes, servem-se especiais do dia, como as experiências com caril ou de funcho com pasta de azeitona.
Os onigiri são os pratos de assinatura, mas depois mantêm-se sempre outros, poucos. Na carta, está estabelecido o pato com yuzu (o famoso citrino japonês): à francesa, é um peito de pato (magret) fatiado e rosado no interior, bem bom; e também o tonkatsu: bife de porco panado com pão panko, frito a alta temperatura, depois pintalgado de um molho do tipo hoisin chinês (o do pato à Pequim), mas mais ácido.
Olvidáveis as sobremesas, talvez por serem feitas com gelados comerciais ou por os diálogos dentro do Onigiria nos terem distraído. Ora entrava a vizinha a pedir um pouco de soja, ora se sentava uma amiga à conversa, um copo de vinho (carta curta e pouco interessante) aqui e outro ali, com a filha de Christine a dar conta da sala.
Eis uma tasca dos novos tempos. Eis uma remanescência das esquinas da Lisboa cosmopolita. A Covid levou muita coisa, mas não o Onigiria.