E, de repente, aparece outro restaurante indo-nepalês que não é só a habitual ementa de coisas com natas e pozinhos.
Na origem do projecto, estão pessoas do Nepal, esses heróis. Lisboa devia erguer uma estátua ao cozinheiro nepalês.
Quem come em restaurantes devia estar muito grato aos nepaleses. Os nepaleses são os principais responsáveis por tantos restaurantes continuarem de pé, sobretudo em Lisboa. Eles estão nas cozinhas mais duras desta cidade: pizzarias com temperaturas infernais; fine dinings que pagam bem ao chef e miseravelmente ao copeiro; tascas que descascam 10 kg de batatas por dia; estão em cozinhas familiares a substituir o filho do dono que foi estudar marketing; estão por todo o lado onde os licenciados em hotelaria preferem o fundo de desemprego.
Posto isto, estamos a falar de Hari Chapagain, o dono do Oven. Hari Chapagain não será o imigrante nepalês médio, que divide casa com sete conterrâneos num T1 da Rua do Benformoso. De acordo com a bio oficial, Hari vem de uma família de chefs que passou pela Alemanha, que viajou pelo mundo e se estabeleceu com restaurante próprio no Sul de Espanha.
Em Portugal, Hari esteve no Yakuza, de Olivier da Costa, No seu Instagram tem fotos à mesa com o patrão e também ao lado de João Félix, estrela de futebol no Atlético de Madrid.
Hari Chapagain não quer ser só mais um cozinheiro anónimo a fazer dois turnos por dia no anonimato de uma cozinha da Baixa ou a arriscar a vida numa Honda PCX da Uber Eats.
Hari, nepalês de Katmandu, quer ser como os outros jovens cozinheiros portugueses. Quer ser chef. E tem feito por isso. O seu Oven abriu há seis meses. No perfil do Instagram aparece como “Finest Indian and Nepalese Cuisine”. A carta faz a fusão entre os dois países, que é uma fusão natural: quer o Nepal, quer o Paquistão partilham muitas tradições culturais e culinárias com a Índia.
Foi, aliás, a partir da antiga Pérsia (hoje Irão) e da região agora ocupada pelo Paquistão, que a peça central do Oven – o forno tandoor – se terá tornado popular, como equipamento comunal nas aldeias. Já a estreia na restauração aconteceu em meados do século XX, no ainda hoje célebre Moti Mahal, restaurante de Nova Deli, também conhecido por ter dado ao mundo a butter chicken.
Actualmente, o tandoor é a ferramenta mais emblemática da cozinha indiana. A sua polivalência – e o facto de poder chegar aos 400 ºC – permite assar, grelhar ou simplesmente aquecer a comida. O do Oven é um exemplar moderno, de cobre e barro, à vista da sala.
Foi de lá que veio o pão nan que abriu um jantar recente. Enquanto o depenicávamos, apreciámos a decoração, outro elemento distintivo do sítio. O restaurante tem mesas e cadeiras de madeira sólida e confortável, paredes em azul escuro e pormenores em dourado mate, um toque de posh que não ofusca. Eis uma sala que agrada ao jovem casal do Tinder e ao das bodas de prata, mas também às amigas estrangeiras da mesa junto à janela enfeitiçadas com os eléctricos da Rua dos Fanqueiros.
Nisto chegam as samosas, ou chamuças, crocantes por fora, suculentas de frango picado e especiarias por dentro. Bem sei que isto é polémico, mas as minhas chamuças nepalesas preferidas ainda são as do Everest Montanha, com carne do peito e coentros frescos: são chamuças altamente estaladiças mas secas no interior, feitas para ensopar nos molhos servidos à parte, de iogurte com hortelã e de malagueta verde.
Quanto a picante, as do Oven só tinham um ligeiro toque, tão ligeiro que o infante nem o acusou.
Nas comidas de adulto (há um menu de criança), nota alta para as duas entradas provadas. Excelentes as costeletas de borrego, tempero clássico de iogurte e especiarias, o forno tandoor a fazer a sua magia de fumo e cocção: suculentas, tenras, maravilhosas.
Veio ainda o peixe frito picante, sinalizado com duas malaguetas na carta – e muitos alertas da empregada de mesa – que se revelaram, afinal, uma brincadeira de meninos. Fora a falta de potência, o prato é óptimo, com o robalo frito na perfeição, húmido por dentro mas com a pele crocante e ligeiramente engosmada com um agridoce de pimentos e cebola (e tamarindo?).
O vindaloo, por sua vez, já surgiu com toda a capsaicina que lhe é devida. Estamos a falar de um prato da região de Goa, tradicionalmente feito com porco. No caso, escolheu-se a variante de camarão (também há de borrego), bichos descascados e tenros de calibre médio a nadar numa polpa escura de especiarias e cebola, onde não senti pujante a mostarda preta (óleo e sementes) que caracteriza o prato.
Nas sobremesas, três opções. O clássico gelado de manga e pistáchio; o gulab indiano, uma bolinha de bolo do tamanho de um abafador ensopada em calda de açúcar, servida com cubos de manga fresca e gelado; e uma chamuça de chocolate, também acompanhada de gelado.
Em síntese. O Oven é um indo-nepalês contemporâneo no estilo, mas tradicional na substância. Produto bem tratado, ambiente cuidado e bonito, serviço simpático e empenhado, pratos fora dos clichés habituais.
Duas advertências. Primeira: flores a mais. Fica bonito aqui e ali, mas o Oven abusa, nem o lassi foi poupado. Segunda: os preços. Estão de acordo com o posicionamento, mas nalguns casos não se justificam (vide, por exemplo, as sobremesas), nem pelas doses, nem pela matéria-prima, nem pela mão-de-obra.
Tirando isso, gostei particularmente do cuidado posto por Hari na ligação com a sala e com os clientes. Veja-se o exemplo do picante: a dada altura, quando percebe que o peixe picante estava demasiado suave, o chef vem à mesa dar as suas explicações e, logo a seguir, corrige no vindaloo.
Hari já é mais chef que muitos chefs.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.