A dada altura, estava um rapaz nu a empurrar o divã da sala, enquanto eu me debatia com uma costela bovina que não tinha pedido (alguém trocara a “entrecôte” pelas “beef ribs”). Era uma costela com rebordos de gordura espessa, coisa que faltava ao performer.
Desisti da comida e fitei o homem nu, que agora mergulhava com as suas carnes cruas e badalantes para cima do divã.
Já vinha preparado para o teatro. E achei interessante. Pessoas nuas a fazerem salto de peixe, num restaurante, é uma coisa absorvente. Ou, pelo menos, mais absorvente do que ver casais aborrecidos sentados à mesa.
O problema foi a comida. E o frio.
Não mandei a costela para trás, porque já tinha decorrido uma hora e um quarto desde que ali me sentara e nem o rapaz pelado aos saltos ou a ensaboar-se haviam conseguido descongelar-me.
Estava tanto frio na sala – uma sala com um pé direito gigante, alguns dez metros de altura – que nem sexo ao vivo me teria aquecido. O que queria era despachar a coisa, um café e uma sobremesa e voltar para a manta do lar.
“O que tem de sobremesa?”, perguntei à empregada, rapariga nos seus 20s. “Ui, isso agora. Às vezes, temos só uma sobremesa. Outras vezes, temos três e nenhuma das três é a que está na carta”, atirou.
Questionei-me se também seria uma performer, a empregada, mas depois ela começou a ler o trio de opções da carta. “Sorbet”, um “ananás invertido” e uma “dark passion overdose”.
Por mero dever profissional, perguntei pelo sorbet, uma vez que no menu só indicavam que era de “diferentes opções sazonais”.
– Quais são os sabores sazonais do sorbet?
– Preciso de ir perguntar ao chef?
– Quem é o chef, já agora?
– Acho que é o Serguey. Ou serão dois? Eles mudam.
– Há dois chefs?
– Acho que sim. Mas eu não percebo nada da hierarquia da cozinha.
Minutos depois:
– Então, os sabores do sorbet são: morango, chocolate e coco – atirou a rapariga.
– Morango é sazonal?
– Acho que sim.
– Está na época do morango, em Janeiro, é isso?, reformulei.
– Acho que sim. Não?! Mas também tem os outros dois sabores, se preferir: chocolate e coco.
– Chocolate e coco, sazonais? – Avancei para a hipótese três. – E a “dark passion overdose”, o que é?.
– Esse é uma panacota de maracujá.
Veio a panacota. Assim que o prato pousou, a minha pele arrepiou-se como a de um frango depenado:
– Desculpe, onde está a panacota?
– A panacota são essas bolinhas brancas.
– Não, isto não é panacota, desculpe.
Uma das coisas que faz a panacota ser panacota é a sua textura suave e pudinhenta. Ora, as bolinhas brancas eram de gelado de nata e ao lado havia outras bolinhas, mas escuras. Um prato todo ele refrigerado – sem passion, nem outra overdose que não fosse de gelo.
Por fim, a conta apareceu e o ambiente tornou-se verdadeiramente siberiano. A sobremesa de bolinhas geladas de “panacota” custava 11€, valor de restaurante Michelin. A costela de vaca eram 27€ (mesmo num Michelin, seria caro). Um robalo de aquacultura, com uma tapenade e uma espécie de pico de galo, ficou por 21€. Um couvert, que era um cesto com uns farrapos de pão seco, valeu 8€.
A única coisa mesmo boa que se comeu foi a burrata, com doce de laranja e diospiro. Parecia dessas invenções de cozinheiro amador com a mania que é criativo, cheia de elementos: construção de massa folhada, “puré de diospiro”, “crispy de sálvia”, “geleia de laranja”. Mas estava óptima.
Ao todo, pagaram-se 106€, conta para duas pessoas. Demasiado.
Dir-se-á: mas também se paga o espaço. E também se paga a performance. Verdade.
O Palácio do Grilo, construído no século XVIII, pertencente até 2021 à família do Duque de Lafões, é encantador e está classificado como Monumento de Interesse Público, desde 2011.
Julien Labrousse, o francês que o comprou e transformou no que considera ser um “museu de artes performativas”, aparentemente, respeitou a arquitectura original.
Mas há também o recheio e há peças de valor que importa preservar, entre elas um livro onde Dom Pedro de Bragança, o primeiro dono, terá mostrado o desejo de que “todos os quartos, tanto na decoração como na função”, fossem montados “para ficarmos lânguidos e sonharmos melhor do que em qualquer outro lugar no mundo”.
No site do Direcção-Geral do Património Cultural, onde está listado o património nacional de relevo do Palácio do Grilo, lê-se o seguinte sobre o imóvel:
“São notáveis os seus interiores, quer pela sua decoração, nomeadamente pelas pinturas murais de autoria de Cirilo Wolkmar Machado, diversas portadas pintadas com grinaldas de flores e um conjunto de azulejaria do século XVIII e XIX, bem como o seu recheio artístico e mobiliário com algumas peças históricas ao nível da pintura de retrato do século XVIII e XIX.”
E, de facto, mal entramos, ficamos boquiabertos com a imponência das salas, à noite apenas alumiadas por candeeiros de abat-jour. O ambiente misterioso prolonga-se por outros espaços, onde se sentarão mais de uma centena de pessoas. Nessa penumbra onírica de castelo fantasmagórico encaixa bem a ideia de teatro gastronómico.
Na noite em que lá fui, em redor das mesas três actores passaram o serão a desestabilizar o ambiente (no bom sentido), sem alguma vez interpelar verbalmente os comensais. Ora ficavam parados olhando o vazio, ora começavam a correr sem sair do mesmo lugar, ora acartavam pedregulhos, ora arrastavam divãs.
Não se deslindou uma narrativa, a performance oscilando entre o teatro do absurdo e a dança de improviso. E a qualidade da exibição foi questionável. Mas a verdade é que o restaurante seria menos valioso sem esta provocação e este sobressalto artístico. É isso, aliás – quero acreditar – que leva tanta gente ali, por estes dias, a maioria estrangeiros, mas também muitos portugueses de meia idade.
Numa sexta-feira à noite, a casa estava esgotada, com mais de uma centena de pessoas dispostas a pagar 50 euros por um jantar. Tenho dúvidas que haja meia-dúzia de restaurantes em Lisboa, hoje em dia, com estes números.
A explicação do êxito poderá estar nisto: as pessoas precisam de emoções fortes e os restaurantes convencionais não lhes estão a dar isso. Sucede que um restaurante é suposto entusiasmar-nos com comida. E aí é que o Grilo deixa de cantar.
Em síntese. Estamos perante uma boa ideia, num cenário espectacular. Mas, por enquanto, falta-lhe quase tudo o resto.
Suponho que, num país a sério, alguém que soubesse de restaurantes fizesse algo extraordinário com este espaço (Julien é apresentado na imprensa como um milionário francês, com salas de espectáculos em Paris e um eco-turismo no Cabo Espichel). Mas estamos em Portugal, um país a brincar, onde os estrangeiros ricos vêm apanhar sol e esbanjar extravagância.
Uma pena. A oportunidade de usar um monumento histórico (e classificado, não esquecer) para fins gastronómicos, mereceria um restaurante de topo. Senão, pelo menos, um que tivesse aquecimento.