Há comidas que nos deixam melancólicos: um cabrito assado no forno com grelos e batatas, por exemplo. É profundamente bom, mas eu penso nisso e apetece-me uma sesta e o som da chuva. Outras comidas lembram-me praia e sol: as sardinhas, a salada de polvo. E depois há a comida mexicana, que nos atira lá para cima. Festa, festa, festa.
Senão, vejamos. Jantar a meio da semana. Eu e o filho adolescente. O miúdo tinha estado fechado no quarto, a fazer coisas de adolescentes fechados no quarto. Estava com neura de quarto.
Eu tinha estado a tarde toda sentado a olhar para um computador, agravando a tendinite e a presbiopia, a teclar coisas de adulto no computador. Estava com neura de computador.
Os dois neuróticos forçaram-se a estar juntos. Ou antes: eu forcei-o.
Precisamos falar com os adolescentes, mesmo que eles não queiram falar connosco – e uma forma de conseguirmos isso é mentindo-lhes sobre onde ir jantar. No caso, prometi-lhe um bitoque e depois levei-o para um mexicano. “O bitoque está fechado”, atirei, no caminho.
Lá fora, choviam pregos. Noite escura de Inverno. O carro avançava pelas poças, o adolescente enxofrado, “um mexicano, aqui?!”.
Encontrámos o restaurante numa rua a descer para Santa Apolónia, não particularmente luminosa ou encantatória, mas com uma algazarra de Largo da Graça no interior.
O sítio é pequeno, senta umas 20 pessoas em mesas, mais umas cinco num balcão de parede. Folclore indie mexicano q.b., luz amarela e cumbia a tocar no aparelho de som.
A casa estava cheia com o que pareciam ser vizinhos vermelhuscos da capsaicina e do álcool, entre expatriados americanos e tugas. Uns bebiam shots de tequila, outros tacos de al pastor – e nós seguimo-los (o adolescente bebeu michelada em vez da tequila: “Isto é estranho. Molho de tomate não é para pôr na cerveja, é coisa para beber no avião”).
Óptimos os picantes da casa, um deles, na verdade, um alioli, o outro de abacate (e chipotle?), magnífico e suave, o habanero com laranja igualmente delicioso, a morder mais do que os outros.
Começo por aqui porque podemos ver o grau de compromisso de uma casa mexicana através do carinho que ela põe no molho picante e nas tortilhas.
Sobre o picante estamos conversados, quanto às tortilhas o Paloma Negra faz um compromisso: para algumas coisas usam-se das frescas, para outras usam-se das comerciais.
Eu preferia que fossem todas frescas, mas parece-me legítima a alternância, até porque a cozinha é do tamanho de uma despensa, só cabendo lá dentro a dona, mulher mexicana sempre com um olho nos tacos e outro na sala.
Veio o pico de gallo com totopos (triângulos de tortilha frita), o tomate maduro e a cebola em cubos. Veio o balazo, a melhor ostra com cenas que comi nos últimos tempos: calibre número três, pequena e gorda, com sumo de tomate, salsa negra e óleo de sésamo – magnífica.
Veio a tal gordita de conchinita, um pastel de milho branco, com os troços de carne porcina lá dentro. Vieram as quesadillas, sandes de tortilhas fritas entremeadas de creme de feijão refrito e queijo derretido – bom, bom. E veio o al pastor, cubinhos de porco marinado em achiote (uma pasta cor de laranja, ligeiramente ácida), em tortilhas de milho branco (comerciais).
No final, só se adoça a boca com o clássico bolo de trés leches, e basta.
Quanto ao serviço, rápido e competente, muito atento aos timings.
Eu e o adolescente falámos bastante. Não sei se foi do picante, se das cores da comida, se da michelada, se daquela forma de comer com as mãos, tão orgânica, tão infantil – a comida mudou-nos o espírito.
Falámos de várias coisas. Do Trump e da Kamala. Dos velhos das mercearias de bairro, que o intrigam, porque os velhos para ele são avôs reformados, não são merceeiros. Da nossa amiga Laura, que morava ali e foi para uma aldeia de Belas e agora aluga a casa no Airbnb. De como o que se vê na Internet, no quarto, nem sempre é o que acontece cá fora – falámos sobretudo sobre isso e rimos.
Gosto muito de mexicano. E gosto muito do meu puto.