Umas gotas de um bom picante podem salvar muita refeição por esse mundo fora – Hugo Brito, chef do Boi-Cavalo, chegou a contar-nos que anda de molho atrás, em formato porta-chaves (isto existe mesmo e pode ser o seu melhor amigo). Qualquer coisa mais deslavada que tenha a infelicidade de lhe cair no prato, basta botar um pouco. Mas, na verdade, não faltam bons restaurantes com o seu frasquinho milagroso para quem gosta de pingar do nariz. Se precisar de um xiripiti, é pedir fachavor: n’O Velho Eurico, o tasco moderno da Mouraria, José Paulo Rocha tem à mão um picante que é receita do pai, com óleo, whisky e muita malagueta. Já no projecto Vira Frangos, pode acrescentar a bel-prazer no frango desossado, a especialidade da casa, um dos cinco picantes caseiros, feitos à base da malagueta piripíri: o Da Casa, o Extra-forte “para pôr extra-pouco ou para extra-valentes”, o Suavezito, o Zézé ou o Verde. Apesar de terem espaços físicos (Rua Silva Carvalho, 190 A e Atrium Saldanha), estão muito virados para delivery e take-away: os picantes chegam a casa em frascos de vidro de 30 ml para poder reutilizar nos seus próprios cozinhados. Também o moçambicano Cantinho do Aziz vende picante para fora. Chama-lhe “sacana” e é feito pela chef Jeny Sulemange, com malaguetas moçambicanas, azeite, sal, vinagre, limão e cebola. Há frascos de 100 ml (7,99€) e de 200 ml (9,99€) e pode comprar online depois de fazer o test drive no restaurante. No roteiro do picante caseiro, vale uma visita ao Bômau (Rua Alexandre Herculano, 61), nascido em 2020 no Rato, que tem uma tábua com quatro tipos de picante caseiros e mandioca (6€), bem como várias opções bem condimentadas para quem gosta de sabores exóticos. Nesse registo, recomendamos ainda uma visita à Fábrica da Musa, onde o cozinheiro Octávio Delmonte é o responsável por um molho chimichurri inspirado numa versão que provou em Buenos Aires. É uma mistura de ingredientes líquidos (água, vinagre de cidra e óleo de girassol) e secos (piripíri em flocos, orégãos, salsa, cebolinho, tomilho, manjericão, alho, cebola, tomate seco, semente de cominhos, paprica fumada) e não só dura bastante tempo como “vai bem com quase tudo, é super-versátil”, garante-nos. Tudo o que se quer.
O encarnado das pimentas que Glediston Titon separa de forma mecânica dos talos verdes prende o olhar. O gesto repete-se centenas de vezes, numa cadência elevada, ao mesmo tempo que observa por cima do ombro se a água que deixou ao lume já está a ferver. É nela que irá aquecer a mistura de malaguetas de Cayena e piripíri que mais à frente se transformará num molho cremoso e alaranjado. A sua cozinha, pequena mas apetrechada, nas Olaias, é o palco onde o cozinheiro de 40 anos produz os molhos e geleias picantes Deusa.
O que começou por ser uma brincadeira transformou-se numa ocupação quase a tempo inteiro. Prova disso é a quantidade de frascos alinhados pelas prateleiras da casa, prontos a chegarem às mãos dos ávidos consumidores e entusiastas de picante que acorrem, todos os sábados, ao Mercado de Produtores da Comida Independente, na Praça de São Paulo, à procura da sua dose de capsaicina – a substância presente nas sementes das pimentas que provoca uma sensação de ardor na boca, como se queimasse.
“Fazia molhos para mim e para amigos, mas em 2018 comecei a pensar em algo mais sério – como engarrafar, no packaging”, diz Titon. A mensagem foi passando de boca em boca, até que um dos seus picantes chegou às mãos de um jornalista gastronómico que, um ano depois de o provar pela primeira vez, lançou um apelo no Instagram para saber quem era a pessoa por trás daquele líquido ardente, mas repleto de sabores complexos. “Isso deu-me gás para continuar”, conta o cozinheiro. Da produção caseira e reduzida nasceu a cada vez maior Deusa Picante.
As conservas de malaguetas foram o primeiro produto da marca. “Conseguia produzir bastante na altura das malaguetas [Julho a Outubro] e dar vazão nos meses em que já não há.” Quando chega à época delas, abastece-se no Hortelão do Oeste, que planta perto de 70 variedades diferentes. Enquanto não ficam prontas, vai a mercados tradicionais da cidade.
O primeiro molho, e o que desbravaria caminho para as restantes criações, foi a Deusa Clássica, que tem por base a mistura de malaguetas que Titon prepara no dia em que a Time Out o visita. Além das pimentas de Cayena, alongadas, e do piripíri português, mais pequeno e arredondado, é usada uma selecção de vinagres e óleo vegetal. Depois de tudo triturado, a mistura é filtrada e engarrafada. “Tentei usar produtos que fizessem uma combinação o mais neutra possível, para fazer com que o molho fosse valorizado e para que o sabor das malaguetas falasse por si.” Como deve ser usado este picante? A imaginação é o limite. “Tenho clientes que o usam em tudo”, conta. O importante é que “complemente um prato e não que altere por completo o sabor”.
O nome – Deusa – é uma homenagem à mãe que vive no Brasil. “O nome da minha mãe é Deusita e as amigas tratam-na por Deusa. É baiana e adora picante”, justifica. Se, ao início, Titon replicava as receitas da mãe, com o tempo foi ganhando liberdade criativa. Além da Clássica, a oferta desdobra- -se em outros três molhos: a Suave, ligeira, ideal para quem se está a iniciar no uso de picante; a Habanero, que é a que pica mais; e a Fermentada, com uma textura e sabor mais complexos.
Uma horta urbana caliente
A manhã está encoberta, mas nem as nuvens abrandam o calor que se faz sentir em Lisboa num início de Junho volátil. Estamos, agora, nas traseiras de um primeiro andar perto do Rato. Da mesa no terraço onde nos sentamos à conversa vislumbra-se adiante uma zona de horta repleta de pequenas plantas prontas a despontar. O dia vai ser quente – e isso são boas notícias para as mais de cem malaguetas que Simon Einstein ali faz crescer desde Fevereiro do ano passado. O norte-americano de 31 anos é uma das caras da marca de molhos Senhor Rito. Samuel, seu irmão gémeo, e Luke Dawson são os outros elementos da equipa responsável pela confecção dos picantes que podem ser encontrados à venda, entre outros locais, todos os sábados, no Santos Collective Market, no Jardim Nuno Álvares, em Santos.
A aventura de vender molhos começou em plena pandemia. Antes, os irmãos dedicavam-se à realização de eventos em que cruzavam a arte e a gastronomia. Os novos tempos obrigaram-nos a adaptar o negócio. Os pop-ups de burritos foram a saída possível, e foi nessas ocasiões que começaram a servir alguns dos picantes que preparavam numa cozinha improvisada num quarto, do outro lado da rua, na casa de Samuel. “Rito é um slang para burrito na Califórnia.” E assim, de forma simples, nasceu o Senhor Rito. “Este jardim era nu, só relva perfeitinha. Nem uma plantinha. E tudo começou assim. Eu não tinha experiência de como plantar, mas fiquei obcecado, sobretudo por malaguetas. Comprei sementes online, porque estas variedades não se encontram facilmente. E descobri que há mesmo uma comunidade de pessoas amantes de malaguetas”, explica Simon num português quase perfeito e com um claro entusiasmo na voz.
As plantas das pimentas, ainda despidas, misturam-se com outros frutos, como os tomates, que também começam a dar nesta altura. À medida que percorremos a pequena porção de terra com o pescoço sempre apontado ao chão, no esforço quase estóico de tentar identificar as diferentes espécies de malaguetas, vamos ganhando consciência que este é um universo difícil de dominar. Encontramos habaneros, “uma malagueta padrão para as mais picantes”, aponta Simon, enquanto nos faz a visita guiada. Mas também há cinco variedades de Carolina Reaper, uma malagueta pertencente à família Capsicum chinense, fruto do cruzamento entre habanero e Naga Jolokia, considerada a pimenta mais forte do mundo, registando mais de dois milhões na Escala de Scoville, a escala criada para quantificar o grau de potência das malaguetas, entre outras plantas. E mais: as aji, oriundas do Peru, ou as mais brandas, como as jalapeño ou serrano, naturais do México.
Na base da maior parte das dez variedades de molhos Senhor Rito encontram-se vinagres, responsáveis por conferir uma acidez essencial. Outros têm base de tomate ou são elaborados a partir de malaguetas fumadas em diferentes tipos de madeira, como o Smoking Ripper.
Da imobiliária para a mesa
Quatro dias depois, rumamos a Benavente, em Santarém. O ponto de encontro é-nos indicado através de coordenadas GPS. O objectivo da viagem ao Ribatejo é conhecer Pedro Fonseca, ex-empresário ligado ao ramo imobiliário (que prefere não ser fotografado), e criador do molho picante natural que comercializa sob a chancela da Mondega Gourmet – que é uma presença cada vez mais forte nas mesas de grandes restaurantes nacionais e internacionais. “A Mondega surge de uma coisa tão simples como o seu criador gostar de picante q.b. e de há muitos anos fazer o seu próprio picante e de o levar para os restaurantes dentro de um frasco conta-gotas”, descreve Pedro, numa divisão envidraçada de casa que serve de escritório e de zona de embalamento para os molhos e para as geleias da sua marca.
O projecto ganhou vida há cerca de dois anos e meio, mas já estava a ser pensado desde meados de 2011. Nesses mais de seis anos, Pedro Fonseca foi travando uma longa batalha contra a burocracia: “O produto chumbou em sucessivas análises. Não há fabricante no mundo que produza conta-gotas para alimentação. Foi um processo longo, de muita teimosia.”
A receita utilizada é de família e vai sendo transmitida de geração em geração. As malaguetas Olho de Pássaro são oriundas de pequenos produtores africanos. “Ainda que se encontrem noutros locais, em África crescem com outro sabor”, diz convicto. “Cada vez que comprava as malaguetas, comprava sementes suficientes para ajudar 60 ou 70 famílias”, acrescenta, explicando que , com o excedente, conseguia oferecer sementes aos produtores a quem normalmente escasseia a matéria-prima. “Essa foi uma das principais razões para continuar. Precisava de consumir o que eles produzem.”
O nome surgiu-lhe num momento de clarividência, fruto do tempo disponível para pensar. “Estava eu a aspirar uma piscina e começa a minha cabeça a pensar sobre o porquê de ser almôndega e não almondêga. Depois tirava-lhe o ‘al’ e ficava ‘môndega’ ou ‘mondêga’. Um dia estava com a senhora minha mãe e perguntei porque se lê ‘almôndega’ e não ‘almondêga’. Primeiro, levei um raspanete e depois lá me explicou as regras de acentuação. Quando surgiu a ideia do picante, Mondega pareceu-me um nome engraçado.” E assim foi.
Até que um frasco de Mondega esteja pronto a ser consumido, é preciso esperar três anos. Nesse tempo, explica Pedro Fonseca, “o produto passa por um período de maceração” que lhe confere a delicadeza e sabor que lhe são característicos. Se dúvidas pudessem existir de que o molho teria, de alguma forma, uma intervenção industrial, vão-se esbatendo à medida que a conversa se prolonga. Pedro está envolvido em todas as fases do processo. “Todos os meses tenho de filtrar picante, pois está no ponto certo. Todas as semanas tenho de encher frascos”, conta.
Já “o controlo de qualidade é bastante simples”, afirma, esboçando um sorriso. “Com um ensopado de borrego faço as minhas provas e é assim que vou vendo a sua evolução. Pelo nariz, pelo sabor, consigo perceber se pode ser Mondega ou se vai para reciclagem.”
É tudo feito em ambiente familiar. Um dos seus filhos, estudante de engenharia mecânica vai, aliás, ajudando o pai a desenvolver mecanismos de engarrafamento que facilitem o processo, sem lhe retirar o cunho artesanal. “Vamos divertindo-nos em família e não passamos o segredo”, brinca.
“Quanto menos fico preocupado em levar a Mondega para fora, mais ela vai chegando a todos os lados.” De forma quase orgânica, a marca espalha-se pelo mundo, de boca em boca, estando já presente em restaurantes e outros espaços de Inglaterra, Irlanda, Grécia ou Dubai. “É um produto resultado do não-stress, da tranquilidade”. O tempo é essencial em tudo o que se faz. Até no picante.
À mesa, prestes a saborear um arroz de cherne, deixamos cair no prato três gotas redondas de Mondega. A cada garfada, com a ajuda da faca, adiciona-se ao arroz de peixe uma pequena porção de picante. “Uma vez ligou-me um indivíduo a dizer que a mulher ralhava com ele por pôr Mondega em tudo. Dizia-me ele que o usava em peixe cozido e que o peixe continuava a saber a peixe.” Não é marketing: a verdade é que continuamos a sentir no prato o sabor do tomate, do camarão, do peixe, das aromáticas. O picante não se sobrepõe a nenhum elemento, mas fica presente na boca. “Não se sobrepõe ao que o cozinheiro faz. Muitos chefs dizem-me que fazem os seus picantes, mas que o meu é melhor”, remata, orgulhoso.