O frango à caçador sempre me intrigou. Sabendo que aquilo não é bicho de correr livre pelo campo, imaginava que tudo começaria com uma cena de tiro dentro da capoeira. Em boa altura me explicaram que era apenas a adaptação do prato tradicional de coelho bravo. Ora, acontece que o coelho à caçador que vou encontrando é também ele uma adaptação do original – nem o animal é de caça, nem se usa já o sangue. Ainda assim, é daqueles exemplares da cozinha de paciência e lume brando que nunca recuso. E é com ele que me estreio no Petisco Saloio.
Não é a primeira vez que escrevo sobre o lugar, mas nunca cá tinha posto os pés. Era Abril, estávamos em confinamento e a comida foi-me entregue. Já lá vai o tempo, e tomo por isso a liberdade de me plagiar nas apresentações.
A casa é hoje mantida por Carlos Pinheiro e Diogo Meneses, dois rapazes que, calculo, não eram ainda nascidos quando ela foi aberta, há trinta e tantos anos, por um casal de Paredes de Coura. Chamava-se O Buraquinho e, ontem como hoje, resumia-se a uma sala esconsa onde se senta uma dúzia de comensais à vez (há outros tantos lugares na esplanada coberta, para quem goste de apanhar fresco ou não goste de apanhar vacinas). A dupla tomou conta do espaço há uns três anos e o resto é uma história felizmente cada vez menos original em Lisboa: malta nova, talentosa e com sólida formação, que se inspira na cozinha tradicional e vai dando vida nova a velhas tascas.
A casa funciona a dois tempos. Ao almoço, com um menu completo por preço fixo e não mais que três pratos à escolha; ao jantar, com uma carta de petiscaria para partilhar. São duas experiências muito diversas, a ponto de quase podermos falar em dois restaurantes. Mas despachemos dois coelhos de uma cajadada só, a começar pelo do almoço.
Recordo-me que a primeira experiência com a cozinha desta rapaziada me impressionou pelo triângulo perfeito qualidade-quantidade-preço. Este almoço não foi diferente. O coelho chega guisado no ponto, tomate, cebola, cenoura, tinto, tudo a desmilinguir-se, com pedacinhos de chouriço a fazer boa batota (é porco por coelho, não é gato por lebre), e umas óptimas batatas, primeiro cozidas, depois envolvidas no conjunto. Tudo isto num insuspeito tachinho de ferro, 15 por 7 cm, atestado a uns 5/6. Contas feitas, parece pouco, mas são quase 500 cm3 de guisado.
E tudo vem para a mesa assim, a preceito, a desejo e aos bocadinhos. Um pratinho de azeitonas marinadas em laranja e orégãos; uma tabuinha com duas fatias de pão de trigo e mais duas de broa de milho; bom vinho corrente da casa num jarrinho de quarto; as mordomias a conta-gotas: “Mais um bocadinho de vinho? Mais um bocadinho de pão?” O bocadinho como medida universal de conforto.
Noutro tacho igual há-de chegar a feijoada de choco, o cefalópode tenro, o feijão branco impecável, mais batota de chouriço preto e vermelho, uma nadinha de sal abaixo da perfeição. No final há ainda uma mousse séria, densa, amanteigada q.b., tudo chocolate, numa tigelinha de barro que também engana. Tudo isto e mais cafés, a 8,50€ por cabeça.
Ao jantar tudo muda. A carta é uma pequena colecção de petiscos que transformam a experiência, e a conta trepa na justa medida em que se elevam os ingredientes, o esforço e a técnica. Exemplo acabado é o belíssimo xerém de camarão (10,20€). O milho ainda em bagos, a lembrar que a isto também se chama papa, mas não é para ser empapado; o cereal escurecido e apaladado pelo caldo dos bichos, que eram carnudos e selvagens como se exige. Bom como o milho.
Impecáveis os croquetes de alheira (1,60€, cada), enxutos e saborosos; gulosa a manteiga de castanha que levou um cesto de pão atrás. Óptimos também os ovos rotos com farinheira (7,20€), a batata caseira frita com casca; certíssima a empada de rabo de boi (13,80€), boa massa quebrada a envolver um estufado também apurado em tinto. Por falar nisso, a carta de vinhos é curta, não mais que uma meia dúzia de entradas, mas bem pensada, justa no preço e certa na temperatura. Bebi um bom Dão tinto, a pouco mais do dobro do preço de supermercado e servido a uns precisos 16 graus.
Em resumo, tiraram outro coelho da cartola. Se à tarde me serviram um dos meus novos menus de almoço preferidos da cidade, à noite fui surpreendido por uma casa de petiscos simples, gordos e bem feitinhos, aquele género de coisa que parece que abunda em Lisboa, mas só até ao momento em que vamos à procura dela. Quanto vale tudo isto? Cinco estrelinhas, nada menos.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.