Há uma tendência que devia envergonhar os lisboetas. Entre tantos conceitos originais tontos e projectos decalcados do Soho e de Belleville, de Trastevere e de Ginza, os restaurantes de cozinha portuguesa definham ou são chutados para a periferia como curiosidades patuscas.
Turistas e estrangeiros com residência fixa encavalitam-se em pizzarias e wine bars, michelins e izakayas, burger joints e cozinhas plant based— e ninguém parece interessado num pastel de bacalhau, numa cabidela, numa arrozada de peixe ou num cozido. À excepção de uns quantos portugueses envergonhados, que insistem em honrar a sopa de legumes, o bacalhau com grão e a delícia de nata, escondendo-se em mesas relegadas para os becos da Baixa, a turba anseia é pela mesma modernidade de Berlim e Londres.
A culpa não é dos turistas, nem dos expats, nem da cozinha portuguesa. A questão é que os empreendedores do sector, excitados com o mundo cool e posh que viam lá fora, mandaram a culinária tuga às urtigas, desde os anos 2010. Restaram uns quantos templos dourados, como o Solar dos Presuntos e o dos Nunes, ou casas atascadas entretanto despersonalizadas, como o Zé da Mouraria. Mas restaurantes novos de comidinhas lusas, com uma estética contemporânea e uma nova energia, contam-se uma meia-dúzia deles (vide o Velho Eurico ou o Cacué), quase sempre projectos independentes ou unipessoais.
Também por isto é de aplaudir o aparecimento do Pica-Pau. Fica no mesmo lugar onde antes viveu o Pesca, com o chef Diogo Noronha aos comandos, e é o restaurante de cozinha portuguesa mais ambicioso da Plateform, o influente grupo de restauração (dono do Alma, Tapisco, ZeroZero, Honorato’s, Honest Greens, Coyo Caco, etc.), liderado por Rui Sanches — que contava apenas uma incursão na cozinha tradicional portuguesa, com a falecida Casa Lisboa, na Praça do Comércio, de fraca memória.
No Pica-Pau, o chef por trás do menu é o mesmo do da Casa Lisboa, mas agora há mais foco e um espaço apropriado. Luís Gaspar, o ponta-de-lança do grupo, ter-se-á inspirado em Maria de Lourdes Modesto para a carta e não quis twists (enfim, com uma ou outra excepção, como o arroz aromático, vulgo basmati, do bitoque, ainda por cima de segunda categoria). Fez muito bem. Não é um conceito original, o que é novo é fazer-se isto num sítio sofisticado, com louça de barro, mas sem folclore nem gordura a escorrer das paredes, cozinha aberta e um serviço capaz de nos indicar a variedade de arroz que temos pela frente.
Carta curta, com pratos do dia que praticamente não variam, de segunda a domingo. Nos fixos, estão lá muitos dos bestsellers de cervejaria, quase tudo executado com mestria. Tradicional o couvert, bolinhas de pão de Mafra quentinhas, para barrar com “manteiga dos Açores” (há muitas…) ou ensopar no molho do pica-pau, aqui isolado da carne; vulgares as azeitonas, ainda que bem temperadas.
Nas entradas, destaque para os pastéis de bacalhau, com puré de batata a sério. O recheio não tem aquela ligeira elasticidade — deliciosa —, presente nos bolinhos de bacalhau do Norte, fartos em nacos do dito, mas são dos melhores que se podem comer nesta cidade, a crosta grossa e seca. De massa fina, por sua vez, os gulosos rissóis de leitão, recheio porcino moído e cheio de pimenta, o óleo limpíssimo. Extraordinárias ainda as iscas, espicaçadas por aros crocantes de cebola avinagrada, um rústico sem tretas, alho laminado e tudo.
Igualmente bom o pica-pau, cujo molho, concentrado e potente, está por todo o lado, aparecendo no couvert, no pica-pau e como base do bitoque. Não foi, aliás, o único molho a repetir-se. Os berbigões de entrada vinham num Bulhão Pato concentrado que parecia também ser a base do molho do arroz de garoupa e berbigão, este demasiado sujo de conchas (gostoso o arroz, mas magros os bivalves, com areia numa ou noutra concha). Por fim, provou-se o polvo à lagareiro, delicioso e tenríssimo o molusco, chamuscado ligeiramente, batatas a murro com pouco sal na pele, mais cozidas do que assadas (é preciso muito tempo de forno…), sobre uma cebolada com pimentos grelhados.
Doces tradicionais clássicos, com mousse de chocolate, arroz doce (al dente, alimonado, mais gelado do que seria aconselhável) e farófias com leite creme, tudo correcto sem deslumbrar.
Matérias-primas boas, sem grandes luxos, executadas com protocolo. Todos os dias roda um prato novo, mas a grelha tem sido fixa, indo da cabidela ao cozido, da massada de garoupa à mão de vaca com grão. Carta de vinhos sem grandes surpresas, faltando garrafas mais selecionadas e representativas de diferenças regionais.
Em síntese. O Pica-Pau é já um óptimo representante da culinária portuguesa em Lisboa, com pratos escolhidos para agradarem a nacionais e a estrangeiros e um serviço de muito bom nível. Seria interessante vê-lo crescer com outra ousadia, mexendo no menu consoante as estações, com mais matérias-primas exclusivas de pequenos produtores e receituário fora da carta. Não é, para já, esse sítio, mas já é um restaurante português muito competente e completo, uma raridade. Preços ao nível do que se paga no Príncipe Real, ou seja, carotes.