A minha amiga é uma eco-excitada-activista-de-Facebook e está a olhar o menu num estado de horror e espanto. Focinho de porco, miolos de borrego, tutano – tudo a deixa em agonia emocional, a civilização a regredir, a barbárie outra vez.
Está enganada a minha amiga no seu escândalo. Barbárie é agarrar num vitelo, tirar-lhe a vazia e deitar fora o resto. Sustentável é aproveitar o bicho todo. Foi a abundância, a cozinha instantânea e a voragem pelo lucro que nos venderam esta ideia de que o tenrinho é que é bom, como se um animal se pudesse reduzir a um único pedaço nobre – e mínimo – do seu corpo. Alguns cortes dão mais trabalho, requerem mais talento e mais conhecimento do que atirar um bife para cima de uma chapa; mas cozinhá-los é um acto de inteligência, bom gosto e altruísmo ambiental.
Sabe disto o Portugal rural e sabe-o José Júlio Vintém, espécie de Crocodilo Dundee do Alto Alentejo, conhecido por Tomba Lobos na região de Portalegre, o homem por trás da carta do Picamiolos – “um selvagem”, diz a minha amiga, sorrindo, indiferente à contextualização.
Júlio Vintém cresceu a aproveitar os recursos da natureza. Na sua terra comia- se, entre outras coisas, cágado, ouriço-caixeiro e, claro, o porco de ponta a ponta, com paragem pelas vísceras e outros órgãos vitais. Durante anos Vintém cozinhou petiscos destes para um grupo de exóticos e não tão exóticos gourmets que se deslocavam – e deslocam – até ao seu restaurante alentejano, mas hoje já é possível prová-los neste cenário de balcões de mármore, instalações de enormes cabeças de porco e vaca, copos Riedel e louça Bordallo Pinheiro.
O projecto, que tem como sócios o mesmo grupo que se associou ao produtor de vinhos José Maria da Fonseca para fazer o By the Wine, aparece na capital depois da tendência da cozinha offal se ter popularizado, noutras partes do mundo, muito por culpa de Anthony Bourdain e companhia. Em Londres, o restaurante St John, a grande referência mundial do nose to tail, costuma ter uma lista de espera do tamanho das vísceras que serve e voltou a revalidar este ano a sua estrela Michelin.
Indiferente a modas, Vintém há muito que serve esta cozinha no Alto Alentejo – e continuará a fazê-lo, aparentemente, acumulando com o Picamiolos (não foi possível saber qual o regime de permanência no restaurante). A questão é saber se urbanos lisboetas, eco-excitados como a minha amiga, que não sabem distinguir uma bochecha de uma bifana, estarão preparados para a sua cozinha. A avaliar pela freguesia, observada em duas visitas recentes, o arranque não estará a ser fácil. Num almoço a meio da semana, éramos a única mesa; dias depois, num jantar a uma sexta-feira, estava menos de meia casa.
Olhando para a lista, percebemos o receio dos mais sensíveis. Nas entradas, ainda assim, há opções para todos, num total de 11 referências. Pode-se começar com costeletas de coelho ou com rebuçados de cação; com miolos de borrego panados ou com argolas fritas de lula; com focinho grelhado ou com uma cândida salada de corações de alface. Nos principais, o risco é maior: para além do porco preto com migas, tudo o resto pode ser considerado mais ou menos extravagante para o palato conservador de grande parte dos jovens adultos, potenciais clientes do restaurante: rabo de boi, costeletas de sardinha, touro bravo, poejada de bochechas de bacalhau, açorda de fraca, barriga de atum.
A tudo isto torceu o nariz a minha amiga eco-excitada, pouco dada a experiências alternativas que não impliquem o consumo de psicotrópicos.
Mas vamos às provas. Couvert de pão trigueiro fatiado, tipo saloio, fofinho e sem personalidade, muito menos alentejana. Boa broa de milho, que numa das visitas veio partida no fundo do saco de pano. Cremoso e equilibrado de sal e doce o paté de fígado e igualmente excelente a pasta de azeitonas, muito fresca. Nas entradas, as costeletas de coelho em mel e tomilho, bem fritas, ossinhos crocantes para comer à mão. O pica-pau era supostamente de “coração de boi” e apresentou-se com uma textura elástica sem ser borrachosa, num molho avinagrado e vínico. Os dois pratos chegaram morninhos e deviam ter chegado quentinhos.
Estranhei a sopa de tomate nesta altura do ano – fora da época do tomate. Surpreendeu ainda assim, muito por força das magníficas tostas em azeite servidas à parte, e do ovo imerso, com a gema no ponto, a esvair-se à primeira colherada sobre o creme. As argolas de lulas, por sua vez, foram um tiro ao lado: moles, sensaboronas, banais, acompanhadas com uma maionese igualmente vulgar. Bem melhores os corações de alcachofras fritos com alho e alecrim, ainda que acrescentassem gordura a entradas já gordurosas.
Eis então o ex-líbris da casa: as pétalas de toucinho com tomilho e limão, magnífica invenção de Júlio Vintém, um clássico do Tomba Lobos – lâminas finas do toucinho num círculo perfeito, a gordura cortada pelos aromas florais da erva e pelo citrino. Espaço ainda para a açorda de fraca, ave que supostamente tem notas de mato, mas aqui apareceu discreta. A açorda vem servida num prato alto, que terá ido ao forno a gratinar, com fatias de pão a fazer de cobertura. Faltou sabor, faltou vinagre, faltaram ervas, a carne cozida, o pão por baixo aguado.
Nas sobremesas, absolutamente extraordinária a boleima, típica do Alto Alentejo, aqui acompanhada com uma bola de gelado de caramelo salgado. A sericaia, por sua vez, na forma de um bolo alto e fofo, que melhorou muito pelo coulis de ruibarbo.
Em síntese. O Cais do Sodré passa a ter um menu com uma cozinha que vai além dos clichés dos ceviches e das steakhouses e do very typical do costume – e isso é estimulante. Mas nas duas refeições que fizemos, faltou afinação a alguns pratos e o serviço alternou empregados tontos e espavoridos com outros seguros, atentos e competentes. Também não gostei que os preços não fossem tão democráticos e alternativos quanto os cortes da carne.
Posto isto, as quatro estrelas lá em cima são um voto de confiança – e uma delas é ideológica: está lá só para premiar a diferença culinária, contra o preconceito. A animal, quando morre, é para ser todo comido.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.