Com um cálice de conhaque gigante e cachecóis do Benfica e fotografias do Estádio da Luz, fica claro que, apesar do nome do bairro, o clube do Sr. Carlos não é o Sporting. Comprou a casa há anos aos pais de Paulo Bento e conserva as fotografias do jogador nas paredes. Introduziu o arroz de moelas com gambas que tinha comido uma vez num restaurante e replicou em casa e deu fama aos caracóis, no tempo deles – é ver nas toalhas de papel na montra se há destes bichos. Remate-se com o bolo folhado com doce de ovos legítimo do Prontinho, também em Alvalade.
Crítica
Nunca me tinha acontecido. Acabar a de fazer um elogio à comida quando o empregado, travessa vazia na mão, atirou. “Você gosta disso?! Eu não acho graça nenhuma ao prato”.
Não foi um sussurro ao ouvido, não foi conspiração contra o cozinheiro. Foi um sincero e sorridente desabafo, vociferado para toda a sala ouvir, sendo que a sala, como de costume, estava numa algazarra festiva e indiferente.
O episódio demonstra uma coisa que toda a população do bairro de Alvalade sabe. O Pomar, tasca com mais de 30 anos, serve com a confiança de quem nada teme. O sítio está lotado diariamente e assenta o sucesso em três coisas: bom produto, sobretudo peixe e marisco; boa cozinha; e um serviço expedito, espirituoso e franco, como se todos os empregados fossem vizinhos a quem podemos confiar o histórico do Google.
Em causa, estava o arroz de moelas com gambas, um dos pratos bandeira do restaurante. A receita não tem grande ciência. Às excelentes moelas estufadas, servidas como petisco à tarde, são acrescentadas as gambas e um arroz carolino pré-cozinhado. As gambas são mais uma extravagância do que outra coisa, mas o efeito final é bom, sobretudo se lhe juntar o molho picante da casa, disfarçado num frasquinho com rótulo comercial.
Isto, claro, digo eu. O nosso empregado tem uma opinião diferente.
Ei-lo de novo, na volta de um linguadinho frito, polme grosso de ovo, arroz de feijão à parte. “Eu sei que há gente que vem de fora para provar o arroz de moelas. Mas para mim não faz sentido. Não sei onde é que o Carlos foi buscar essa ideia de lhe pôr as gambas. Um dia deu-lhe uma travadinha e saiu-lhe isto”.
Carlos é Carlos Martins, o patrão. Está sempre atrás do balcão, mas em tempos era ele quem servia à mesa. Nessa altura, havia uma figura pública que lhe dava uma ajuda: Paulo Bento, ex-jogador de futebol, ex-seleccionador nacional. O restaurante começou por ser dos pais do antigo médio do Benfica e foi ali que o miúdo cresceu, nos intervalos dos treinos.
Há uns 20 anos, Carlos Martins acabou por comprar o estabelecimento à família Bento. O trespasse em nada fez desmerecer a casa, que ainda hoje exibe orgulhosamente o seu passado. Nas paredes contam-se 11 fotografias do craque de risca ao meio, desde criança até ser jogador da Selecção. Ganham as fotos em que aparece com o equipamento do Benfica, mas também lá o vemos vestido de verde, mais uma prova do desportivismo de Carlos Martins, benfiquista convicto.
Clubismo à parte, uns e outros saem felizes. Eu sou mais fã do petisco do que das refeições, mas come-se sempre acima da média, sejam os carapauzinhos fritos com açorda, sejam os linguadinhos ou os chocos grelhados, seja o cozido à portuguesa ou os lagartos de porco na grelha e o bitoque, sempre com bons palitos caseiros de batata frita a acompanhar, e um molho puxado de alho e louro, com um golpe de um licoroso.
Dito isto, é a partir das cinco, seis da tarde, quando abre o período do petisco, que a fasquia se eleva. Camarão do rio, canilhas, percebes das Berlengas (às vezes, às vezes), as tais moelas, pica-pau e as conchas sempre tratadas com delicadeza: o berbigão bem carnudo e isento de areia, a amêijoa da mesma estirpe, ambos a brilhar num Bulhão Pato sem gorduras lácteas, só azeite, alho, coentros e vinho branco.
Na época dos gastrópodes, são obrigatórias as caracoletas, se bem me lembro infiltradas com uma molhanga decadente de manteiga e mostarda, que não nos deixa levantar a cabeça do prato — e talvez seja melhor assim: nas paredes, só o merchandising de cervejeira e a iconografia redundante de Paulo Bento nos desviam da ideia de que estamos numa WC.
Uma saborosa WC.
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