A restauração é como qualquer outro mercado. Quando chega alguém forte ao mercado, o mercado estrebucha. E a restauração estrebuchou com o Prado. De alegria. De surpresa. De inveja.
A fazer claque, antes sequer da equipa entrar em campo, os bloggers com mais mundo. Na internet, a excitação começou andava António Galapito de quinta em quinta à procura de fornecedores. Ex-braço direito de Nuno Mendes, na Taberna do Mercado, em Londres, o chef anunciou logo ao que vinha e a comunidade vibrou: a ideia era fazer uma cozinha da-horta- -para-a-mesa, com produtos portugueses e técnicas de todo o lado, em pratos para partilhar, num sítio onde um adulto de ténis se sentisse confortável a comer com faqueiro de grife. Os modernos rejubilaram, os antigos torceram o nariz. Uns e outros tinham razões.
Havia indícios de que podíamos estar perante algo de novo e bom. Mas também podia ser só estrangeirite, apanhar a tendência, encher a boca de farm to table e fazer a brisa nórdica sentir-se na Sé de Lisboa.
O Prado podia ser só uma coisa a brincar ao Noma.
Dizem estudos científicos que é muito difícil mudar os preconceitos das pessoas. A primeira convicção é quase sempre a conclusão. E foi isso que aconteceu. Galapito serviu as pessoas e as pessoas manifestaram-se de acordo com o que anteciparam. De um lado, grande comoção com sabores simples e espontâneos, acompanhados de aplausos ao ambiente informal; do outro lado, grande desalento com sabores simples e espontâneos, acompanhados de lamentos à ausência do protocolo Michelin.
Foi no meio desta guerra civil gastronómica, ora estrondosa e digital, ora cochichada entre chefs e agentes de comunicação, que fiz lá duas refeições. No total, experimentei dez pratos diferentes, quatro muito bons, um bom, cinco inesquecíveis – todos originais.
Para me deter só nos inesquecíveis, começo com o prato-bandeira. O berbigão com espinafres (a verdura muda consoante a estação ou o fornecedor), coentros e pão torrado pode bem representar a filosofia da cozinha. Poucos elementos (três, quatro), produto sazonal, legumes tratados com amor e técnica, combinações aparentemente estapafúrdias que sabem muito bem.
Foi assim também na cavala com creme de acelgas, o peixe firme, porventura curado, o creme xaroposo mas fresco, mar e horta, no fim o espanto: caramba, isto resulta! Como resulta o tártaro de carne Barrosã envolvida numa couve galega grelhada ou a couve coração com soro de leite de cabra e nozes, como resulta o palito de entrecosto – cada um dos pratos a dar-nos o sabor das coisas, muitas delas raras, a levar-nos onde nunca fomos.
Os preços são justos, mesmo admitindo que uma dose não satisfaz uma pessoa (a ideia é pedirem-se várias). Para quem quiser encher a barriga, há sempre pão da Gleba, aqui com uma côdea ainda mais grossa e crocante, ladeado por banha de porco preto com alho e louro ou manteiga de cabra com pó de alface do mar.
Nas duas visitas, três coisas não correram tão bem: demora na chegada de um dos pratos; sobremesas boas, mas não tão boas como os salgados; flores de plástico num sítio onde nada é de plástico. Detalhes. Para as 5 estrelinhas lá em cima contribuíram também a sala luminosa como um pátio bonito e confortável; bem como um serviço quase sempre conhecedor e atencioso.
De resto, tudo neste Prado é tratado como artesanato: das louças ao mobiliário, dos peixes às carnes, passando pelos hortícolas, das bebidas preparadas na casa (imperdíveis o kombucha e uma infusão de flor de sabugueiro que lá provei) aos vinhos exclusivamente naturais ou biodinâmicos, a cargo da escanção Maria Rodriguez.
Isto acontece assim porque há uma ética: uma ética de verdade, ambiental e profissional. E há paixão: paixão pelos produtos portugueses, por um modelo de restaurante onde se pode rir alto com comida fora de série. Paixão pela arte. Ide. Cabem lá modernos e antigos.
A crítica de Alfredo Lacerda foi publicada a 11/04/2018
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